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Voto impresso: expectativas frustradas

Por Bruno Cezar Andrade de Souza

1) Introdução
Os debates advindos com o avanço da proposta que estabelece a impressão do voto no Brasil têm ganhado contornos de briga generalizada. Paixões, naturais em debates futebolísticos, assumiram o lugar da compreensão e da análise de argumentos. Infelizmente, a polarização que experimenta a sociedade brasileira encontrou mais um ambiente para sua disseminação.

Para fugir da discussão improdutiva, pretende-se fazer uma análise das bases de argumento dos defensores do voto impresso e verificar se é possível que a implantação desse mecanismo cumpra, teleologicamente, o que se pretende ou, ao contrário, se frustra expectativas e adiciona elementos já não mais experimentados nos processos eleitorais brasileiros.

De início, é necessário depurar discursos de parte a parte dos debates.

O que se deve desde logo deixar evidente, por exemplo, é que o texto proposto na Câmara dos Deputados, qual seja, a PEC nº 135/2019, não pretende eliminar as urnas eletrônicas do processo de votação. De igual sorte, o objetivo do projeto não é o retorno à votação por cédulas, nos moldes que ocorria antes de 1996.

A intenção do legislador é, independentemente do meio utilizado para a votação, fazer com que, no bojo desse processo, sejam expedidas “cédulas físicas conferíveis pelo eleitor”, as quais, por sua vez, devem ser acondicionadas sem contato manual para eventual auditoria.

Assim, o discurso amedrontador de que a proposta busca uma involução ao se adotar cédulas de votação não procede.

O outro polo desse debate, por sua vez, lança mão do argumento de que o sistema de votação eletrônica não é auditável e, portanto, sujeito a manipulações e fraudes impossíveis de serem identificadas sem um elemento material, no caso a impressão em papel, para efetuar a auditoria.

Esse argumento, de igual sorte, não condiz com os fatos. O atual processo eletrônico não é apenas auditável, como, em verdade, passa, efetivamente, por auditorias rotineiras.

2) Independência do software de votação
O indigitado projeto de emenda constitucional, que busca reintroduzir a auditoria por cédula impressa do voto, traz, como um de seus fundamentos, a possibilidade de “auditoria independente do software instalado nas umas eletrônicas” e afirma, equivocadamente, que apenas o Brasil utiliza tal modalidade de equipamento [1].

O conceito de independência do software de votação foi detalhado em 2008 por Rivest e Wack [2]. Para esses autores, a não disponibilização de uma prova física do voto faria com que o eleitor tivesse apenas que confiar no fato de que o software havia sido escrito e bem testado e, ainda, que o programa em execução no dia da votação fosse, efetivamente, aquele certificado anteriormente.

Os referidos autores afirmam que é quase impossível ou economicamente inviável proceder a uma varredura exaustiva em busca de erros ou códigos maliciosos em grandes sistemas de votação que são extremamente complexos.

Ainda segundo Rivest e Wack, para se considerar que há independência de software na votação, eventuais erros ou alterações não detectáveis no programa não teriam a capacidade de alterar o resultado de uma eleição. Nesse caso, seria possível, por meio da contagem física de votos, identificar os desvios do programa utilizado.

Isso significa dizer que, caso um erro ou uma adulteração realizados no software de votação existisse, seria afetado apenas o resultado decorrente desse sistema informatizado, mas o resultado efetivo poderia ser aferido mediante a recuperação do registro físico dos votos, passíveis de apuração por uma forma independente.

É interessante notar que os próprios autores afirmam que essa auditoria independente não necessariamente precisaria ser feita mediante expedição de registro físico dos votos. Para eles, é possível haver abordagens por avanços em técnicas de criptografia que sejam melhores do que uma trilha de auditoria baseada em papel. Com isso, eventual preocupação sobre a conferência do eleitor em relação à sua escolha ressai relegada a um segundo plano, visto que, consoante os autores, os conhecimentos criptográficos não são compreendidos pela maioria das pessoas.

Por último, Rivest e Wack afirmam que, mesmo com a implementação de artefato físico do voto, é de fundamental importância que sejam mantidos e ampliados criteriosos e completos testes de varredura nos sistemas de votação, antes e depois do pleito, os quais, ainda segundo os autores, podem ser inclusive mais caros do que os atualmente existentes.

O que não fica claro, em sua abordagem, é de que forma haveria independência de software. Como apresentado por Rivest e Wack, a independência, ao que parece, seria exclusivamente da contabilização dos votos. Ou seja, o sistema em que foi feita a votação teria uma contabilização, e o procedimento manual executaria a outra como simples conferência de que há coincidência entre os resultados.

Tal independência, todavia, não dissiparia dúvidas quanto à existência de erros ou códigos maliciosos no programa de votação, pois tanto um quanto outro resultados têm origens iguais, ou seja, dependentes. Isso porque o registro físico do voto é impresso pelo próprio software que gerencia a votação.

Há, ainda, um agravante em se considerar auditada a eleição exclusivamente na crença de haver conferência de erros na cédula pelo eleitor. Estudo conduzido pelos pesquisadores Selker e Cohen [3] demonstrou que apenas 3% dos eleitores conferiram sua votação e perceberam haver irregularidades em 108 eleições simuladas nas quais foram incluídos propositalmente erros em todas as cédulas impressas.

Logo, se a falta de confiança no processo eleitoral chega a um ponto crítico, qualquer que seja a solução apresentada pode ser frustrada por novas formas de se burlar o processo de votação. Por isso, afigura-se fundamental a transparência e a participação social em todas as fases de preparação do pleito. Apenas assim será possível fiscalizar pormenorizadamente os processos e identificar possibilidades de melhorias, bem como elevar o grau de confiança do processo de escolha de candidatos.

Nesse sentido, compreende-se que o conceito de independência de software carece de alguns elementos para que se possa efetivamente dar resposta satisfatória ao problema que se pretende solucionar. Mais grave do que não dar resposta adequada é possibilitar a volta de sérios problemas que muito fragilizariam a legitimidade dos pleitos.

Além disso, embora o software possa ser considerado complexo, a urna eletrônica é um equipamento relativamente simples feito para ser utilizada nos mais variados cenários do país e que apresenta baixíssimo percentual de erros que exigem substituição. Incluir um módulo de impressora nesse conjunto adiciona elevado grau de incerteza quanto ao regular funcionamento dos equipamentos, com reflexos diretos no processo de votação.

3) Reintrodução de problemas históricos já superados quanto à legitimidade da votação
Talvez o mais marcante problema, de ordem social, que pode ganhar força com a impressão do voto é o recrudescimento da pressão física, psicológica e econômica que passará a sofrer eleitores e eleitoras em relação a lideranças que os subjuga. Hoje já existe esse ambiente de pressões, normalmente baseado em mero argumento falacioso de acesso à votação. A tendência é de que a reinclusão do papel na votação agrave tal situação.

Vitor Nunes Leal [4], ao rememorar a figura emblemática dos coronéis no cenário de eleições no século 19, afirma que, a despeito de constantes alterações da legislação que regulava as eleições, a regra em vigor era a precariedade do processo de apuração que, no mais das vezes, era entregue a órgãos políticos. A força econômica e física desses líderes locais garantia eleições pouco dadas à competitividade franca e cercadas pela certeza da vitória dos candidatos apoiados por esses coronéis.

A influência maléfica de líderes locais nas eleições até hoje perpassa o processo de votação. Não por outra característica foi que em 2009 o Congresso Nacional fez inclusão do parágrafo único no artigo 91-A da Lei nº 9.504/1997, que prescreve ser “vedado portar aparelho de telefonia celular, máquinas fotográficas e filmadoras, dentro da cabina de votação”. Tudo para garantir a tranquilidade do exercício do voto sem que, com isso, eleitores sejam coagidos a votar em determinada liderança com a comprovação de sua escolha.

A percepção da generalização da fraude no processo de votação é identificada ainda já no século 20, mais especificamente no pleito ocorrido em março de 1930. Lilia Schwarcz e Heloisa Starling afirmam que tais eleições, como de costume, foram caracterizadas por falcatruas, subornos e coerções dos dois lados da disputa e, “encerrada a apuração, não havia muito que fazer, além de resmungar contra fraudes eleitorais, no mais das vezes impossíveis de serem comprovadas” [5].

A indiferença e a tolerância com as fraudes eleitorais foram sendo enfraquecidas ao longo dos anos. Principalmente após a redemocratização e com o advento do novo texto constitucional de 1988, as instituições entraram em um processo de fortalecimento e, com isso, puderam contribuir para aumentar a confiabilidade do processo eleitoral.

O ponto de ruptura pode ser indicado pelas eleições de 1994 no estado do Rio de Janeiro. Cédulas sumiram, percentuais de votos em branco foram baixíssimos se comparados com as médias nacionais e quadrilhas foram identificadas atuando para fraudar o pleito. Foi necessário, então, anular a eleição proporcional e realizar novo certame. Já na eleição subsequente, em 1996, começaram a ser introduzidas as urnas eletrônicas.

Ao longo desse percurso histórico, é perceptível que a apuração é fase sensível de todo o processo eleitoral, inclusive com a preocupação e os gastos inerentes ao reforço de custódia de urnas e cédulas. A ampliação de seu escopo pode não trazer os benefícios de transparência almejados e, ainda, inviabilizar garantia mínima de lisura do processo de totalização.

Poder-se-ia argumentar que, para resolver todos os problemas até aqui descritos, bastaria retirar o viés humano da apuração a partir da informatização e mecanização do processo de contagem dos registros impressos do voto. Contudo, alguns países já utilizam equipamentos para contabilização de cédulas. Porém, o sistema já foi objeto de contestação.

Um grupo de pesquisadores favorável ao registro físico de votação apresentou ao Comitê Permanente de Justiça e Inquérito da Segurança Comunitária do Parlamento australiano relatório que aponta que a auditoria mediante a digitalização dos votos não é capaz de ilidir dúvidas sobre a correção dos dados apurados, dada a impossibilidade de detectar alguns tipos de erros [6].

4) Conclusão
Com o retorno do voto impresso, expectativas podem ser frustradas, visto que os céticos continuarão desconfiando do sistema eletrônico de votação, e aqueles que já consideram o sistema insuspeito podem deixar de ter tal confiança com a introdução da impressão do voto que vem acompanhada de uma série de problemas que já haviam sido superados pelo país.

Seja qual for a solução que o futuro nos reserva, finalizo com a constatação de Auer e Mendez [7], que, avaliando o processo eletrônico de votação pela Internet no contexto da União Europeia, afirmam:

“A escolha entre os diferentes dispositivos técnicos e soluções disponíveis nunca é definitiva e é de natureza mais política do que técnica: quanta segurança pode e deve ser garantida em um determinado momento em um determinado contexto sem ameaçar ou mesmo sacrificar as vantagens essenciais da votação online? Não há soluções fáceis para esses enigmas e as escolhas de valores inerentes envolvidos. O máximo que se pode esperar é que os controles ex ante e ex post estejam em vigor para diminuir os problemas de fraude, autenticação de eleitores e similares, que inevitavelmente serão colocados em maior extensão pelo voto online do que atualmente na votação off-line. Isso ajudaria a apaziguar as preocupações dos direitos fundamentais dos céticos em relação ao voto eletrônico”.


[1] Segundo o International Institute for Democracy and Electoral Assistance (International IDEA), atualmente há em todo o mundo ao menos 16 países (inclusive alguns Estados dos Estados Unidos da América) que utilizam urnas eletrônicas com tecnologia similar à brasileira e, ainda, outros 6 países que implantaram votação por meio da rede mundial de computadores. As eleições utilizando tais modalidades de acesso ao voto podem ocorrer em nível nacional, regional ou local. Disponível em: https://www.idea.int/ Acesso em 17/6/2021.

[2] On the notion of “software independence” in voting systems. Philosophical Transactions of the Royal Society A: Mathematical, Physical and Engineering Sciences, [s. l.], v. 366, n. 1881, p. 3759–3767, 2008. Disponível em: https://doi.org/10.1098/rsta.2008.0149

[3] An Active Approach to Voting Verification. Caltech / Mit Voting Technology Project “ Threats To Voting Systems ” Workshop ), [s. l.], n. October, 2005.

[4] Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7. ed. São Paulo: Companhia das letras, 2012.

[5] SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Brasil: uma biografia. 2. ed. São Paulo: Companhia das letras, 2018.

[6] CONW1AY, A. et al. Supplementary Submission to the Standing Committee on Justice and Community Safety’s Inquiry into the 2020 ACT Election and the Electoral Act. Austrália: [s. n.], 2021.

[7] Introducing e-voting for the European Parliament elections The constitutional problems. In: THE EUROPEAN UNION AND E-VOTING. Londres: Routledge, 2005.

Bruno Cezar Andrade de Souza é mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Eleitoral.

Revista Consultor Jurídico

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