No julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), o plenário virtual do Supremo Tribunal Federal, por votação unânime, reconhecendo a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra, proibiu-a em processos que versem sobre a agressão ou morte de mulheres por seus atuais ou ex-companheiros, por contrariar os preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana.
O voto condutor — que foi proferido pelo ministro Dias Toffoli — deixa claro que, ao acolher essa inteligente construção, o Supremo Tribunal Federal buscou resgatar a dignidade da mulher, principal vítima desta forma de violência, tão arraigada na nossa sociedade, que sempre foi tolerante com a agressão e o assassinato de mulheres, para cuja permanência foram criadas sucessivas teses, entre as quais, a legítima defesa da honra, para aqueles casos em que a mulher, exercendo o direito legítimo de seguir a vida — sozinha ou em novo relacionamento — coloca fim à vida comum, ou mesmo em casos de adultério ou busca de um novo relacionamento. Para isso, nossa Suprema Corte fez uma leitura criativa das formas tradicionais da organização familiar, marcada pela assimetria e autoritarismo, amparada na discriminação abusiva e de subalternidade, que torna a violência doméstica uma das maiores feridas que a sociedade contemporânea suporta.
Essa decisão e os termos em que foi proferida representam um marco no sistema jurídico nacional, mas, tão somente, por sua simbologia, pois, na vida real, provavelmente não terão nenhum efeito prático. A razão é de fácil apreensão: a criatividade dos profissionais do Direito no exercício constitucional da ampla defesa não tem limites e, portanto, o autor de um feminicídio — consumado ou tentado — poderá ser absolvido com base em outras teses, como, por exemplo, a conhecida causa supralegal da inexigibilidade de conduta diversa, sem que se faça, em plenário, nenhuma alusão à “defesa da honra”. E também não será com a extinção do Tribunal do Júri, como muitos preconizam que, como por encanto, nunca mais um matador de mulheres será absolvido por ter agido em legítima defesa da honra.
Na realidade, a reprodução desse conceito técnico jurídico, em grande parte responsável pelo assassinato impune de mulheres, e que no dizer ministro Dias Toffoli constitui “argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil”, encontra amparo no sistema jurídico nacional e, sobretudo, na forma em que os aplicadores da lei interpretam preceitos constitucionais e normas legais, fazendo-o de forma a propiciar a solidificação de uma sociedade assimétrica, em que à mulher não é conferido o direito de escrever a sua própria história, relegando-a à condição de objeto e propriedade do homem, numa clara demonstração de desprezo à dignidade humana.
Parece, portanto, que a solução para esse grande impasse está na desconstrução de alguns mitos e no enfrentamento de dois pontos fundamentais: a forma de organização do julgamento pelo tribunal popular e a soberania dos veredictos, valores muito caros à nossa melhor tradição jurídica.
Ora, não é necessário acentuar que tanto os aplicadores técnicos da lei quanto os julgadores leigos são frutos de uma sociedade desigual, de modo que, conceber um ordenamento jurídico que inclui o quesito genérico “o jurado absolve o réu”, é o mesmo que autorizar o Conselho de Sentença a expressar toda forma de discriminação e preconceito, podendo absolver o matador de mulheres, o racista e o homofóbico. Parece claro que a lei em vigor, permitindo até mesmo a absolvição “por clemência ao macho traído”, constitui a verdadeira inconstitucionalidade a ser enfrentada pela Suprema Corte, pois esse enunciado possibilita a reprodução de toda forma de preconceito, cuja consagração desconsidera a tutela de valores e interesses da própria sociedade. Não é por outra razão que a legítima defesa da honra — tese que havia perdido um pouco de sua força ao longo dos anos — ressurgiu com todo vigor em 2008, a partir da reforma do Código de Processo Penal que inseriu o quesito genérico no julgamento de crimes contra a vida.
É verdade que as decisões do Tribunal do Júri não são motivadas, entretanto, é um mito que se construiu e, em boa parte para justificar a reprodução de valores sociais ultrapassados, que a decisão do tribunal popular pode estar completamente dissociada da prova ou do discurso realizado pelas partes em plenário. Não, essa não é a finalidade da lei, nem mesmo em nome da soberania dos veredictos, inscrita no artigo 5º, XXXVIII, alínea “c”, da Constituição da República. Aliás, esse é o outro ponto crucial que deve ser enfrentado, em nome do qual se justifica toda forma de preconceito ao conferir significado equivocado à palavra. Ora, a Constituição não atribuiu ao Tribunal do Júri o poder divino e incontrastável da imutabilidade de seus veredictos. O legislador, em consonância com os preceitos constitucionais, atribuiu a ele mesmo — o Tribunal do Júri — o poder de alterar o mérito de suas próprias decisões. Ou seja, a proclamada soberania dos veredictos somente impede a alteração de mérito por outras vertentes do sistema de Justiça. Até mesmo o Supremo Tribunal Federal, pela 1ª Turma, em data recente e por maioria, justamente em caso que versava sobre legítima defesa da honra, distorceu o significado da palavra e manteve a absolvição do acusado, com base na soberania do júri, permitindo, dessa forma, a reprodução e a disseminação de valores retrógrados, odiosos e discriminatórios que, agora, em boa hora, o plenário decidiu banir do ordenamento jurídico nacional. Naquele momento, os ministros da 1ª Turma, com os mesmos argumentos que agora utilizaram nesse último julgamento, bem poderiam determinar a realização de novo julgamento pelo próprio Tribunal do Júri da comarca, como, aliás, já o tinham feito o tribunal estadual e o Superior Tribunal de Justiça. Oxalá o plenário do Supremo Tribunal Federal, quando analisar o tema em sede de repercussão geral, dê ao conceito de soberania o significado buscado pelo legislador constitucional, como, aliás, já o fizeram os ministros Luiz Barroso e Alexandre de Moraes.
Em suma: a decisão de banir a legítima defesa da honra do ordenamento jurídico nacional tem um imenso valor simbólico — o de personificar o caminho que tende a enveredar a Justiça brasileira, pois já passou da hora de o Supremo Tribunal Federal, que tem propiciado inegáveis avanços sociais mercê da omissão do Congresso Nacional, rever esses pontos que disciplinam o procedimento do júri e que são claramente inconstitucionais, que, se não forem alterados, no julgamento de assassinatos de mulheres continuarão a reproduzir a assimetria social e a subalternidade da mulher, legitimando a cultura de dominação que privilegia os homens na sociedade brasileira.
Mais uma vez está nas mãos da Suprema Corte banir a aberta violação aos direitos humanos das mulheres.
Valderez Deusdedit Abbud é procuradora de Justiça do MP-SP e vice-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático.
Revista Consultor Jurídico