As instituições do judiciário, ministério público e outras relacionadas ao direito têm se ocupado primordialmente de aplicar as normas relacionadas à diversidade para fora de seus ambientes, mas é preciso direcionar essa atenção também para suas próprias estruturas. O alerta foi feito pela promotora de justiça da Bahia Lívia Sant’Anna – personalidade reconhecida em âmbito internacional pela atuação contra o racismo -, durante live promovida nessa terça-feira (30) pela Escola Judicial e pelo Comitê de Gestão da Diversidade e Inclusão do TRT de Mato Grosso.
A promotora explicou que o racismo institucional é uma reprodução da hierarquização das pessoas de acordo com a raça, o que impede que pessoas negras acessem seus direitos, serviços e espaços de poder e decisão. Por isso, também está presente no sistema de justiça brasileiro. “As instituições estão dentro de uma sociedade estruturalmente racista e, portanto, reproduzem isso. Seria até ilógico esperar que elas fizessem o movimento contrário por si sós”, acrescentou.
Para demonstrar a gravidade e o impacto da escravização até os dias atuais, ela lembrou que de cada 10 anos de existência do Brasil, sete deles foi no sistema escravocrata. O país recebeu 40% dos 12 milhões de africanos escravizados e foi o último do ocidente a declarar a abolição. De outro lado, promoveu a política de embranquecimento, com subvenções e doação de terra aos migrantes europeus, enquanto os negros libertos eram deixados à margem e alvo de uma política de criminalização. “A seletividade racial do sistema criminal é antiga”, afirmou.
A continuidade das ideias racistas se dá também na forma como as crianças são educadas, com a inferiorização de pessoas negras nas escolas e nos livros didáticos. “Isso deixa marcas profundas. Crianças negras são obrigadas a conviver, ou melhor, a sobreviver ao racismo desde sempre. Quando pessoas brancas passam, às vezes, a vida inteira sem sequer refletir sobre essa questão”, comentou.
Esses elementos na formação da sociedade brasileira acabaram por naturalizar a discriminação e o preconceito e deram origem à expressão racismo estrutural, pois está no ‘cerne’ da formação de um povo.
Racismo nas instituições
No sistema de justiça, os ‘corpos negros’ são escassos, em especial o de mulheres negras, apontou a palestrante. Segundo ela, a ideia de um padrão universal, em que homens brancos, cristãos e heterossexuais surgem como o modelo ideal, domina nossa sociedade, inclusive no Poder Judiciário. “Nós mulheres negras, corpos raros no sistema de justiça, precisamos ecoar nossas vozes contra o racismo para que essa discussão ganhe eco”, destacou.
Mas, além da atuação dos negros, ela enfatizou como fundamental o papel das instituições na luta antirracista. Segundo ela, a discussão sobre raça precisa se tornar um tema central nas instituições. “Essa discussão no Brasil não é algo tangencial ou periférico. É algo que diz respeito à nossa democracia, que nunca foi alcançada efetivamente para pessoas negras”, insistiu.
A mudança, observou, deve começar pelos conteúdos previsto nos editais de concurso. “São cobrados conhecimentos das relações étnico-raciais, legislação específica? Se não prevê, a mensagem que passa é de que isso não é necessário, que não é uma questão importante, que ele não precisará levar isso em consideração na vida profissional”.
A participação de pessoas brancas na luta antirracista também foi enfatizada pela palestrante. Esse processo, afirmou, inclui inicialmente as pessoas brancas reconhecerem os privilégios que colhem dessa relação racial. Reconhecimento que também é doloroso, comentou. Mas é preciso sair da zona de conforto e entender os privilégios que essa parcela usufrui, por conta da raça e cor, se dá às custas da opressão de outros grupos. “A exclusividade nessa luta não pode existir. O racismo é um problema de todas as pessoas”, concluiu.
A live pode ser assistida no canal da Escola Judicial do TRT/MT no YouTube, neste link.
(Fabyola Coutinho/ Aline Cubas)