Crédito, ABR/ Em três meses, quase metade da população foi vacinada contra H1N1 em 2010
O Brasil virou um exemplo a ser seguido na pandemia. O país superou sua meta e vacinou mais de 88 milhões de pessoas.
Quando a campanha começou, a maioria das doses necessárias já estavam nas mãos do governo federal, que tinha desde o ano anterior acordos para a compra de três imunizantes.
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O governo também lançou uma campanha contra os boatos que colocavam em xeque a eficácia e a segurança das vacinas.
O resultado: mais de 45% dos habitantes já estão imunizados. Nenhum lugar do mundo vacinou tanto quanto aqui.
Essa era a situação do Brasil em junho de 2010, três meses depois do começo da campanha de imunização contra a gripe suína, doença causada por uma variante do vírus H1N1 que causou uma crise global.
O Brasil chega agora, na luta contra a covid-19, à mesma marca dos três meses de vacinação, mas em uma situação bem diferente.
Pouco mais de 25 milhões de pessoas, cerca de 12% da população, receberam ao menos uma dose desde 17 de janeiro, e só 8,5 milhões, em torno de 4%, tomaram as duas doses necessárias.
“A gente continua a ser um exemplo, só que o pior e não mais o melhor como a gente já foi”, diz Cristina Bonorino, integrante do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia.
A pesquisadora diz que essa diferença é por causa da falta de vacinas. “Se não fosse por isso, certamente não estaríamos onde estamos hoje”, diz.
Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações, acha a mesma coisa. “É o único limitador”, diz ele.
Ele acredita que hoje mais gente poderia estar vacinada a essa altura do que há dez anos, porque a covid-19 é uma doença mais perigosa que a gripe suína.
“O que move as pessoas é a sensação de risco. Teria filas e filas, pessoas estariam sendo vacinadas 24 horas por dia. Mas estamos em uma campanha de vacinação que não tem vacina.”
A epidemiologista Carla Domingues, que coordenou a campanha de vacinação contra H1N1 e esteve à frente do Programa Nacional de Imunização entre 2011 e 2019, diz que a campanha atual é mais complexa.
Isso porque as vacinas hoje são aplicadas em duas doses, em vez de uma como a para H1N1, e os imunizantes têm regimes diferentes de administração.
Mas ela acredita que o país tinha o potencial de estar em uma posição melhor, porque a população quer se vacinar e toda a estrutura estava pronta para essa campanha.
“É lamentável. Temos um programa que é referência, mas estamos na rabeira mundial, junto com países que não têm a menor capacidade de fazer vacinação por causa de questões política e erros estratégicos que levaram à escassez de vacinas”, diz Domingues.
Os três especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também concordam neste outro ponto: a falta de vacinas é uma consequência de decisões do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
O governo brasileiro apostou por muito tempo em um único imunizante, o da farmacêutica AstraZeneca, que foi desenvolvido em parceria com a Universidade de Oxford, do Reino Unido.
Bolsonaro se recusou a comprar doses da CoronaVac, vacina criada pela chinesa Sinovac com o Instituto Butantan, em meio a uma disputa política com o governador paulista, João Doria (PSDB).
O instituto, ligado ao governo de São Paulo, diz que ofereceu em julho do ano passado 160 milhões de doses, mas não teve resposta.
O presidente inclusive desautorizou o general Eduardo Pazuello depois do então ministro da Saúde anunciar em outubro a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac.
“Mandei cancelar”, disse o presidente. “Não compraremos vacina chinesa.”
Seu argumento era de que só adquiriria vacinas aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ignorando que seu governo já tinha desde julho um acordo para adquirir a vacina de Oxford, que também não tinha sido chancelada pela agência àquela altura.
O presidente também não quis comprar a vacina da Pfizer. A farmacêutica americana disse que ofereceu 70 milhões de doses em agosto.
Bolsonaro se justificou dizendo que uma cláusula do contrato previa que o governo federal, em vez da empresa, se responsabilizaria por danos à saúde causados pelo imunizante, que usa uma tecnologia inédita em vacinas baseada em engenharia genética.
“Se você virar um jacaré, é problema de você, pô”, ironizou o presidente, em meados de dezembro.
Mas aí a vacina de Oxford atrasou. Erros na pesquisa obrigaram os cientistas a fazer mais testes, e a AstraZeneca teve — e ainda tem — dificuldades para produzir o que prometeu.
O governo Bolsonaro acabou fechando um acordo com o Butantan em janeiro e com a Pfizer em março, mas já havia perdido um tempo importante.
Um outro acordo foi acertado com a Covax Facility, aliança liderada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para levar vacinas contra a covid-19 aos países mais pobres.
Mas o governo brasileiro, que tinha a opção de encomendar doses suficientes para até 50% da população, optou pela cobertura mínima, de 10%.
“O governo não encomendou as vacinas quando elas estavam sendo encomendadas por outros países. Não diversificou por achar que não era necessário. Só teve escolha errada. Não teve uma certa. Assim fica difícil”, diz a imunologista Cristina Bonorino.
O que fizemos de diferente há dez anos
O governo federal agiu de maneira bem diferente uma década atrás.
Luís Inácio Lula da Silva, então no fim do seu segundo mandato, anunciou a compra de um imunizante do laboratório francês Sanofi Pasteur, que ainda estava sendo testado, em agosto de 2009.
Fazia dois meses que a OMS havia reconhecido que o surto de H1N1 havia se transformado em uma pandemia.
A nova variedade tinha sido identificada em abril daquele ano no México e nos Estados Unidos — no Brasil, os primeiros casos foram confirmados no início de maio.
Um dia depois da OMS declarar a pandemia, a uma farmacêutica suíça, a Novartis, anunciou a produção de uma vacina contra a gripe suína.
Isso só foi possível porque já existiam imunizantes contra a gripe comum, e os laboratórios só precisaram desenvolver versões que protegessem contra o novo H1N1.
Os termos acertados entre o governo brasileiro e a Sanofi previam a importação de 18 milhões de doses. Depois, também a fabricação de mais 33 milhões de doses pelo Instituto Butantan, que tinha um acordo de transferência de tecnologia com essa empresa.
O Brasil comprou outras 40 milhões de doses da canadense GlaxoSmithKlein em novembro de 2009. Um terceiro contrato foi fechado em janeiro de 2010, com a Organização Pan-Americana de Saúde, braço da OMS nas Américas, para mais 10 milhões de doses.
O governo federal disse na época que esperaria ter a maioria das doses em mãos para dar início à vacinação, que só começou de fato em março de 2010, seis meses depois da China se tornar o primeiro país do mundo a imunizar contra H1N1.
“Em 2010, teve planejamento. Mais de 50% das doses já estavam no país quando a vacinação começou, e todo o quantitativo chegou durante a campanha”, diz Carla Domingues.
Desorganização, confusão e ansiedade
A epidemiologista avalia que outra diferença entre aquela época e hoje foi que o calendário de vacinação foi sido divulgado dois meses antes da primeira dose ser aplicada.
Desde janeiro, já se sabia quando seria imunizado cada um dos seis grupos de risco da gripe suína: profissionais de saúde, gestantes, indígenas, pessoas com comorbidades, crianças entre 6 meses e 2 anos de idade e adultos saudáveis entre 20 e 29 anos. Depois, foram incluídos adultos entre 30 e 39 anos.
Domingues recorda que houve uma campanha nacional na época para explicar como seria a vacinação e que as pessoas deveriam esperar sua vez.
“A população entendeu isso. Não teve gente indo pra outra cidade para tomar vacina ou tentando furar a fila porque não sabe quando vai conseguir se vacinar”, afirma a especialista.
Desta vez, o governo Bolsonaro divulgou o esboço de um plano de imunização contra a covid-19 em meados de dezembro, mas sem um cronograma — e chegou a ser cobrado pelo Supremo Tribunal Federal por causa disso.
Questionado, o ministro Pazuello disse que a vacinação começaria “no dia D, na hora H”. Dias depois, ele anunciou em um encontro com prefeitos que seria em 20 de janeiro, uma quarta-feira.
Pego no contrapé por Doria, que mandou aplicar a primeira dose da CoronaVac assim que a Anvisa aprovou a vacina, no próprio dia 17, o general adiantou o começo da campanha nacional para a segunda-feira.
A vacinação começou com 6 milhões de doses da CoronaVac. O primeiro lote da vacina de Oxford só chegou ao país cinco dias depois.
“Hoje, o que estamos vendo é a própria definição de um plano desorganizado. O governo federal abriu mão de definir a política e deixou cada Estado e município fazer como quiser”, diz Domingues.
Enquanto alguns lugares estão vacinando quem tem 65 anos, diz a epidemiologista, outros ainda estão aplicando em quem tem 70. Alguns já imunizam professores e profissionais de segurança, enquanto outros não.
“Olha a confusão que isso causa na cabeça das pessoas… Muita gente fica ansiosa.”
As mentiras que contam sobre as vacinas
Assim como hoje, com os imunizantes contra covid-19, a vacina contra H1N1 também foi alvo de mentiras que circulavam pela internet e no boca-a-boca.
O Ministério da Saúde disse na época que esses boatos eram “irresponsáveis” e lançou uma campanha para esclarecer que a vacina não causava autismo, paralisia, reações alérgicas potencialmente fatais, problemas neurológicos ou malformação do feto em gestantes, entre outras coisas.
Não houve nenhum esforço deste tipo agora, pelo contrário. O próprio Bolsonaro já questionou a segurança e a eficácia das vacinas em mais de uma ocasião, mesmo depois de elas serem aprovadas pela Anvisa.
Também já disse diversas vezes que não as tomaria, porque já tinha sido infectado, contrariando as recomendações das principais autoridades no assunto.
“A grande falha do governo foi o negacionismo, de todas as vacinas. Não deram ouvidos à ciência. Agora, estamos sem vacina no pior momento da pandemia”, diz o imunologista Renato Kfouri.
O clima no país era radicalmente diferente a esta altura do campeonato em 2010. Em meados de junho daquele mesmo ano, o governo federal veio a público anunciar que tinha vacinado 88% dos 92 milhões de brasileiros que faziam parte dos grupos prioritários tinham sido vacinados.
Havia conseguido bater assim a meta original, de aplicar em 80% dessa população. O Ministério da Saúde divulgou depois que o resultado final tinha sido ainda melhor e que mais de 88 milhões de pessoas haviam sido imunizadas nos três meses de campanha.
Foi “a maior vacinação que já aconteceu (no país)”, como disse o então ministro da Saúde José Gomes Temporão em uma entrevista coletiva na época.
O país pode agora superar essa marca, porque o governo federal diz já ter comprado mais de 562 milhões de doses, que serão entregues até o final do ano.
A campanha de vacinação contra a covid-19 pode entrar assim para a história, como tudo mais que diz respeito a essa pandemia. Mas a imunologista Cristina Bonorino diz que não está otimista.
“Quantas vezes as previsões do governo já foram alteradas? Muda toda semana. Dá para confiar que teremos 500 milhões de doses até o final do ano?”
BBC Brasil