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Minirreforma trabalhista precariza ainda mais as condições de trabalho

O texto joga na fronteira da verdade com a mentira ao escamotear uma afronta a preceitos constitucionais do direito do trabalho

por Rubens Bordinhão de Camargo Neto

   A Medida Provisória 1045/21, aprovada no último dia 10 pela Câmara dos Deputados, traz mudanças relevantes no sistema de regulação das relações de trabalho do País, impactando de forma especial os trabalhadores que possuem jornada de trabalho reduzida, isto é, empregados que, por força de lei, trabalham em período inferior a 8 horas por dia. Para eles, caso aprovada a medida, o adicional de hora da hora extra será reduzido de 50 para apenas 20%.

Estamos falando aqui de bancários, jornalistas, operadores de telemarketing, músicos, operadores cinematográficos, advogados, trabalhadores em minas de subsolo, entre outras categorias que têm direito a uma jornada de menor duração em razão de alguma particularidade das condições de trabalho, que exige uma redução do tempo trabalhado como forma de preservação da higiene, saúde e segurança. É justamente essa salvaguarda que está em xeque, já que com uma remuneração menor do labor extraordinário, a extensão da jornada de trabalho desses empregados deixa de ser um óbice custoso, e passa a ser um convite para a extrapolação rotineira.

Desde a reforma trabalhista de 2017, a realização de horas extras prescinde de maiores formalidades (bastando um simples “acordo” individual entre empregado e a empresa), o que institucionalizou a ocorrência do labor extraordinário ao bel prazer do empregador mais despudorado. Agora se vai mais longe, porque, conjugada à facilidade de se exigir as horas extras, reduz-se o valor do respectivo adicional, rebaixando ainda mais o valor da força de trabalho. Se o que justifica a existência do regime de jornada reduzida é a preservação da vida da força de trabalho, a Medida, nesse sentido, claramente possui uma natureza espoliativa da classe trabalhadora.

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O texto normativo prevê um prolongamento da jornada desses empregados até o limite de 8 horas diárias com a incorporação das horas em sobrejornada à duração normal do trabalho e o pagamento de um acréscimo de 20% sobre o valor da hora normal de trabalho, ao invés do atual percentual de 50% devido para qualquer trabalho que exceda a jornada regular. Essa operação, diz o projeto, pode ser realizada mediante simples acordo entre as partes, ou ainda ser negociado em convenção ou acordo coletivo de trabalho.

Contudo, não poderia o texto da Medida simplesmente decretar a redução do adicional de horas extras de forma taxativa e explícita (“fica reduzido o valor da hora extra de 50 para 20%”), já que lei ordinária não pode revogar o art. 7º, inciso XVI, da Constituição, que expressamente estabelece o direito à “remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal”. Por isso, a MP criou o sofisma jurídico denominado “jornada complementar facultativa”, por meio de quatro jogadas.

Primeiro, o texto abandona o termo “horas extras” e faz uso da – muito mais palatável – expressão “extensão continuada da duração normal de trabalho”. Segundo, assim chamando o tempo de prorrogação do trabalho, a MP dispõe que essas horas adicionais passam a compor a “duração normal do trabalho”, o que viabiliza a discussão jurídica de sobreposição da norma coletiva sobre o disposto em lei no que diz respeito à jornada de trabalho (art. 611-A, inciso I, da CLT). Terceiro, o projeto atribui um adicional de 20% a essas “horas normais” de trabalho, o que dá impressão de uma majoração, quando se trata verdadeiramente de um decréscimo. E arremata com o quarto movimento, chamando todo esse conjunto de regime “facultativo”, muito embora a sua adoção possa ser feita por um simples acordo entre empregado e o empregador, que, como se sabe, dada a notória disparidade econômica, sempre se revela como uma obrigação ao trabalhador.

Nos meandros dessas erosões gramaticais, o empregado do falacioso “regime de jornada complementar facultativa”, embora continue trabalhando depois do horário, como já o fazia, agora não vê mais em seu holerite a rubrica “horas extras”, mas sim “extensão continuada”, e, apesar de entregar a mesma quantidade de trabalho, passa a receber uma remuneração menor. Mudam-se as aparências para se precarizar o trabalho.

É necessário chamar as coisas pelo seu nome

“Extensão continuada da duração normal de trabalho” é verdadeiramente “hora extra”. O regime de jornada complementar facultativa não difere, em nada, do regime de trabalho extraordinário, e, portanto, toda prorrogação da jornada de trabalho deve ser remunerada com adicional mínimo de 50%. A distinção criada pela MP não tem razão de existência no mundo jurídico. No plano da validade, este ponto se revela como uma escancarada fraude ao texto da Constituição que estabelece um valor de adicional de horas extras, e, também, uma esdrúxula tentativa de se contornar o foro qualificado que é exigido para a mudança de qualquer norma constitucional. Ainda, considerado como hora extra, e não como horas normais de trabalho, o regime de jornada complementar viola também o art. 611-B, inciso X, da CLT, que não permite a redução, via negociação coletiva, do adicional de horas extras.

Criou-se um engenhoso artifício jurídico, cuja fundação, porém, padece das fragilidades mais básicas, como a evidente inconstitucionalidade. Mais do que isso, o texto da MP joga na fronteira da verdade com a mentira, ao escamotear, por meio de um léxico próprio, uma afronta a um dos preceitos constitucionais mais caros do direito do trabalho.

Aqui, aliás, o direito, ao invés de trincheira dos trabalhadores, presta-se a instrumento de superexploração do capital, já que contribui para o movimento que estrangula a remuneração da força de trabalho no sentido inferior à sua sobrevivência. No plano do discurso, a MP amolda-se à matriz neoliberal, em que o governo vende a mofada ideia de que mais uma reforma das relações de trabalho facilita a contratação e impulsiona a economia. Mesma narrativa adotada pela reforma trabalhista de 2017 e que, como se viu, já antes dos efeitos da pandemia no mercado de trabalho, não trouxe resultados de retomada para o país.

Apenas chamando os institutos jurídicos pelos seus verdadeiros nomes pode existir uma discussão franca e qualificada sobre a jornada reduzida. Da forma que está posta, a Medida Provisória, cujo texto ainda será analisado pelo Senado Federal, não contribui para esse debate. Ao contrário, o projeto desvela uma intenção de sorrateiramente passar a perna na lei sob o efeito de precarizar as condições de trabalho de inúmeras categorias de trabalhadores.

Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital.

Rubens Bordinhão de Camargo Neto

Mestre em direito pela UFPR e advogado trabalhista na Gonçalves, Auache, Salvador, Allan & Mendonça Advocacia, integrante da Rede LADO

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