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Isenção de IR sobre resgates de previdência privada de portadores de moléstia grave

Por Ludmila Mara Monteiro de Oliveira e João Victor Ribeiro Aldinucci

Dois ramos do Direito que vinham se desenvolvendo de forma muito desvinculada parecem receber destaque na atualidade. Sob os holofotes vêm sendo colocadas temáticas que exaltam uma até então esquecida relação entre o direito tributário e os direitos humanos,[1] que demanda estejam as políticas fiscais em sintonia com a preservação da dignidade de cada indivíduo.[2] O reconhecimento desse elo torna possível asseverar que “o Estado deve deixar a renda do contribuinte livre de qualquer tributação até o limite em que aquela permita preencher os requisitos mínimos para uma vida digna” [3].

Ao nosso sentir, é a partir dessa necessidade de salvaguarda do florescimento humano, garantindo-lhe o necessário para uma existência digna, que foi instituída a isenção do imposto de renda pessoa física (IRPF) sobre os proventos de aposentadoria, reforma ou pensão recebidos por portadores de moléstia grave — ex vi dos incisos XIV e XXI do artigo 6º da Lei nº 7.713/88. Se a chegada a uma fase mais madura já demanda uma série de dispêndios com medicamentosos e encarecidos planos de saúde, tirante de dúvidas que para os adoentados o desembolso é ainda mais vultuoso, carecendo de amparo estatal para que não sejam ainda mais vulnerabilizados. O respeito à equidade, à capacidade contributiva e à dignidade da pessoa humana são as balizas que inspiram a necessidade da retirada da base de cálculo do IRPF indigitados montantes.

Para fazer jus à isenção, três são os requisitos inarredáveis e cumulativos que necessitam ser cumpridos: (i) deve o contribuinte ser portador de uma das moléstias legalmente previstas; (ii) deve receber proventos de aposentadoria, reforma ou pensão, visto que a regra isentiva não enumera outros rendimentos; e, por fim, (iii) deve deter laudo pericial emitido por serviço médico oficial da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios — ex vi dos incisos XIV e XXI do artigo 6º da Lei nº 7.713/88 c/c art. 30 da Lei nº 9.250/95.[4]

A matéria é inclusive objeto do enunciado da Súmula Carf nº 63, segundo o qual “para gozo da isenção do imposto de renda da pessoa física pelos portadores de moléstia grave, os rendimentos devem ser provenientes de aposentadoria, reforma, reserva remunerada ou pensão e a moléstia deve ser devidamente comprovada por laudo pericial emitido por serviço médico oficial da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios”.[5]

Se há muito inexistente controvérsia acerca da isenção dos IRPF dos portadores de moléstia grave sobre os rendimentos provenientes de aposentadoria, reforma, reserva remunerada ou pensão, o mesmo não pode — ou, melhor, não poderia — ser dito quando são os rendimentos oriundos de resgates de previdência privada. O ponto nodal para o desate da querela está em definir qual a natureza da verba: se de caráter previdenciário, albergada pela norma isentiva; se de natureza diversa, por ela desamparada.

Os que entendem pela tributação dos resgates de previdência privada aduzem que “quando a contribuinte resgata valores antes da transformação em renda futura não há uma complementação de aposentadoria, e sim simples resgate de recursos aplicados”.[6] Outrossim, repisado pela Câmara Superior serem as isenções literalmente interpretadas, por força do disposto no art. 111 do CTN, “não est[ando] abrangido pelo conceito de ‘aposentadoria’ os valores investidos pelo contribuinte em fundo de previdência privada antes deste preencher os requisitos para o recebimento do benefício”.[7]

Parcela substancial dos precedentes citados foi proferida após a edição da Nota SEI nº 50/2018/CRJ/PGACET/PGFN-MF, que incluiu o tema na lista de dispensa de contestar e recorrer da Procuradoria da Fazenda Nacional, uma vez que “o STJ pacificou o entendimento no sentido de que, por força do artigo 6º, XIV, da Lei nº 7.713, de 1988, e do artigo 39, § 6º, do Decreto nº 3.000, de 1999, o resgate da complementação de aposentadoria por portador de moléstia grave especificada na lei está isento do imposto de renda”.[8] Não obstante, tanto a “Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (…) no ‘Perguntas e Resposta – IRPF 2019 e 2020’ (…) [quanto] a recente Solução de Consulta DISIT/SRRF nº 10.006, de 10 junho de 2020, continu[aram] a insistir com a tese superada e já dispensada de contestar e de recorrer pela PGFN para os resgates de PGBL”.[9]

Em sintonia com a jurisprudência dos Tribunais Superiores estão alguns acórdãos proferidos pelo Carf, principalmente a partir de 2018;[10] entretanto, somente em 2020 começa existir sinalização de que se sagrará vencedora, [11]  no âmbito do Conselho, a tese “de que o resgate da contribuições à previdência privada, Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL) e aos Fundos de Aposentadoria Programada Individual (Fapi), não descaracteriza a natureza jurídica previdenciária da verba”.[12]. Em uma guinada copernicana, a Câmara Superior, por unanimidade, passou a entender ser a parcela isenta de incidência do IRPF.

No acórdão que ensejou a interposição de recurso especial pela Fazenda Nacional, sublinhado que “uma vez a previdência complementar tem natureza previdenciária, o modo pelo qual recebe os valores decorrentes das contribuições não altera sua natureza jurídica, é dizer, tanto faz receber mensalmente, resgates pontuais ou total, que continuam tendo natureza de proventos de aposentadoria, o que induz a afirmar que sendo aposentado possuidor de moléstia grave (nos termos da Lei) ou Moléstia Profissional ou ainda Aposentado por invalidez decorrente de acidente em serviço, estes resgates estarão isentos do IRPF”.[13]

Para chancelar o entendimento externado, em sintonia com o que demanda o direito constitucional e os direitos humanos, a Câmara Superior sustentou que a não incidência do IRPF sobre os proventos de aposentadoria, reforma ou pensão recebidos por portadores de moléstia grave não seria “uma isenção própria,[14] concebida como um privilégio ou um favor legal, mas sim uma isenção técnica, cuja finalidade é resguardar o princípio da capacidade contributiva e o mínimo existencial”.[15] Dito ser facilmente possível concluir que o recebimento de “tais rendimentos não resultam em capacidade contributiva para o seu receptor e, portanto, estão fora do campo da incidência do imposto de renda. Desta forma, a interpretação dessas regras deve ser necessariamente norteada pelo princípio da capacidade contributiva e pelo princípio da renda líquida”.[16]

Em arremate, de forma a rechaçar suposta afronta ao inciso II do artigo 111 do CTN, impositivo da interpretação literal da norma de não incidência, foi sustentado que a “lei isentiva deixa de fazer qualquer distinção entre os valores pagos pela previdência pública, pela previdência privada e pelo resgate”. “Isto é, a interpretação segundo a qual a isenção não alcançaria o resgate é, a meu ver, restritiva, e não constante da norma. Em matéria de interpretação, ‘aquilo que foi dito deve prevalecer sobre o que deixou de ser; aquilo que foi dito mais diretamente deve prevalecer sobre aquilo que deixou de ser’.”[17]

A mudança de entendimento do Carf para reconhecer a natureza previdenciária dos resgates de previdência privada para fins de isenção do IRPF dos portadores de moléstia é, em última análise, um passo para que a dignidade da pessoa humana, principalmente daquelas em adversidade, jamais deixe de ser preservada.

Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] Destacamos aqui dois recentes julgados do Supremo Tribunal Federal que bem demonstram estarem ambos os ramos do direito em alinhamento: (i) a declaração da inconstitucionalidade da exigência da cota patronal da contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade, tendo sido sublinhado “o inegável avanço da nossa Constituição cidadã? na proteção da maternidade como direito social (art. 6º), da família como base da sociedade (art. 226 com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 65/2010), bem como do planejamento como livre decisão do casal, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, atribuído ao Estado o dever de propiciar recursos educacionais e científicos para o seu exercício.” STF. RE nº 576967, Rel. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 05/08/2020; e (ii) a fixação de interpretação conforme a Constituição do art. 35, III e V, da Lei nº 9.250/1995, para que, na apuração do IRPF, a pessoa com deficiência que supere o limite etário e seja capacitada para o trabalho pode ser considerada como dependente, desde que a sua remuneração não exceder as deduções autorizadas por lei. Na oportunidade, asseverado que o tema debatido “envolve, de forma clara e direta, a tutela de direitos fundamentais de um grupo de pessoas vulneráveis que recebem especial proteção constitucional, especialmente após a aprovação e promulgação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência com status de emenda à Constituição (art. 5º, § 3º, da CF/1988). Como se demonstrará adiante, cuida-se aqui de resguardar a igualdade material e o direito ao trabalho das pessoas com deficiência, bem como o conceito constitucional de renda e o princípio da capacidade contributiva. Por essa razão, parece-me que esta Corte está autorizada a adotar uma conduta mais proativa, sem que incorra em ofensa ao princípio da separação de poderes (art. 2º da CF/1988).” STF. ADI nº 5583, Rel. Voto Vencedor ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 17/05/2021.

[2] “[A] imbricação entre direito tributário e direitos humanos pode ser tentada ao menos sob três lentes, as quais podem ser assim sinteticamente enunciadas: i) os direitos humanos como forma de nortear o delineamento de políticas fiscais; ii) as regras do direito tributário como violadoras de direitos humanos; e, iii) a tributação como forma de financiar a realização direitos humanos.” OLIVEIRA, Ludmila Mara Monteiro de. Justiça Tributária Global: Realidade, Promessa e Utopia. Belo Horizonte: Letramento, 2019.

[3] LEHNER, Moris. Consideração econômica e tributação conforme a capacidade contributiva. Sobre a possibilidade de uma interpretação teleológica de normas com finalidades arrecadatórias. In: SCHOUERI, Luís Eduardo;  ZILVETI, Fernando Aurélio (coords.). Direito Tributário: Estudos em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, p. 151.

[4] Vide ainda: art. 39, XXXIII e §§ 4º e 5º do RIR/1999 (art. 35, II, “b” e § 3º do RIR/2018).

[5] Ressaltamos não desconhecermos ter o Superior Tribunal de Justiça editado dois verbetes sumulares sobre a matéria (os de nºs 598 e 627), os quais afirmam serem desnecessárias tanto “a apresentação de laudo médico oficial para o reconhecimento judicial da isenção do imposto de renda, desde que o magistrado entenda suficientemente demonstrada a doença grave por outros meios de prova”, quanto “a demonstração da contemporaneidade dos sintomas da doença nem da recidiva da enfermidade.” Entretanto, no âmbito do CARF, responsável por exercer o controle de legalidade dos atos praticados pela Administração, não é possível descurar das balizas expressamente previstas em lei, mormente se tratando de norma isentiva, a qual deve ser literalmente interpretada – ex vi do inc. II do art. 111 do CTN.

[6] Acórdão nº 2201-003.193, Cons. Rel. CARLOS CESAR QUADROS PIERRE, sessão de 12 de maio de 2016 (unanimidade). A Solução de Consulta COSIT nº 10/2014 encampa idêntico entendimento e fora mencionada nas razões de decidir de alguns julgados que afastaram a concessão da isenção – a título exemplificativo: Acórdão nº 9202-008.384, Cons. Rel. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI, Redator Designado MAURÍCIO NOGUEIRA RIGHETTI, sessão de 21 de nov. de 2019 (maioria); Acórdão nº 2401-007.299, Cons.ª Rel.ª MARIALVA DE CASTRO CALABRICH SCHLUCKING, sessão de 5 de dez. de 2019 (voto de qualidade).

[7] Acórdão nº 9202­007.711, Cons.ª Rel.ª RITA ELIZA REIS DA COSTA BACCHIERI, sessão de 27 de mar. de 2019 (unanimidade). Cf. ainda: Acórdão nº 2301­006.075, Cons. Rel. WESLEY ROCHA, Redator Designado REGINALDO PAIXÃO EMOS, sessão de 10 de maio de 2019 (voto de qualidade).

[8] Nota SEI nº 50/2018/CRJ/PGACET/PGFN-MF. Ressaltamos que “a dispensa de contestação e recursos não se aplica (…) nos casos de resgate de valores de planos VGBL, uma vez que tais espécies de planos, ostentando natureza de seguro de vida (com cobertura por sobrevivência), não se enquadram ao conceito de previdência privada.” Idem.

[9] Essa importante e precisa narrativa é encontrada no acórdão nº 2202-007.192, sob a relatoria do Cons. JULIANO FERNANDES AYRES, que, em sessão de 1º de set. de 2020, à unanimidade, reconheceu a isenção do imposto de renda dos valores associados a resgate de FAPI/PGBL. Acrescentamos que no “Perguntas e Resposta – IRPF 2021”, em contraposição ao ocorrido nos anos anteriores, esclarecido que “(…) a isenc?a?o de imposto de renda institui?da em benefi?cio do portador de mole?stia grave especificada na lei estende-se ao resgate das contribuic?o?es vertidas a plano de previde?ncia complementar.”

[10] Acórdão nº 2401-005.165, Cons. Rel. CLEBERSON ALEX FRIESS, Redator Designado RAYD SANTANA FERREIRA, sessão de 6 de dez. de 2017 (maioria); Acórdão nº 2301-006.382, Cons. Rel. ANTONIO SAVIO NASTURELES, sessão de 8 de agosto de 2019 (maioria); Acórdão nº 2201-007.145, Cons. Rel. FRANCISCO NOGUEIRA GUARITA, sessão de 6 de agosto de 2020 (unanimidade);

[11] Acórdão nº 2201-007.145, Cons. Rel. FRANCISCO NOGUEIRA GUARITA, sessão de 6 de agosto de 2020 (unanimidade); Acórdão nº 2202-007.192, Cons. Rel. JULIANO FERNANDES AYRES, sessão de 1º de set. de 2020 (unanimidade).

[12] Acórdão nº 2202-008.103, Cons. Rel. MÁRIO HERMES SOARES CAMPOS, sessão de 7 de abr. de 2021 (unanimidade).

[13] Acórdão nº 2402­007.134, Cons. Rel. GREGÓRIO RECHMANN JUNIOR, sessão de 14 de mar. de 2019 (maioria).

[14] Segundo Schoueri, “[q]uando a atuação do legislador é no sentido de tornar comparáveis as situações a partir do critério da capacidade contributiva, tem-se que o emprego da isenção é meramente técnico: não há a excepcionalidade. O legislador apenas procurou descrever a hipótese de incidência, valendo-se de todos os artifícios que tinha à mão: seja uma descrição minuciosa e enumerativa, seja, alternativamente, uma descrição geral seguida de isenção, que estreita o alcance daquela hipótese.” SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 258/259.

[15] Acórdão nº 9202-009.228, Cons. Rel. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI  sessão de 18 de nov. de 2020 (unanimidade).

[16] Idem.

[17] Idem.

Ludmila Mara Monteiro de Oliveira é doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University. Foi residente pós-doutoral na UFMG. Conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf; professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

João Victor Ribeiro Aldinucci é conselheiro titular da Segunda Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf.

Revista Consultor Jurídico

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