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Inteligência artificial e alienação

Imagem: Rahul Pandit

Por MAURO LUIS IASI*

Por precisão terminológica, a sigla Inteligência artificial deveria significar Inteligência alienada

“O cérebro eletrônico comanda \ Manda e desmanda \ Ele é quem manda \ Mas ele não anda” (Gilberto Gil,Cérebro eletrônico, 1969).

Em uma brilhante charge, que infelizmente não sei quem é o autor, vemos uma pessoa perguntado a outra se ela se preocupa com o avanço da inteligência artificial e o outro responde que não, que se preocupa mais com o retrocesso da inteligência natural.

Não foram poucas as reações diante de aplicativos que prometem textos sobre qualquer assunto, desenhos criativos, fotos forjadas, debates sobre o sentido da vida ou da filosofia ou da sociologia ou da arte culinária, poemas e letras de música, tudo isso diante de um mero comando e certos indicativos daquilo que se deseja. Expoentes das empresas lançaram uma carta manifesto contra os perigos da Inteligência Artificial e pediram um tempo, não se sabe se para poder entrar na concorrência ou pensar nas dimensões supostamente éticas de tal desenvolvimento tecnológico.

Outros mais pragmáticos lançaram livros, como por exemplo um que apresenta um manual de como escrever romances de sucesso usando o famoso aplicativo, não sabemos se escrito por aquele que se denomina autor ou pelo aplicativo. De qualquer maneira, estranhamente apresentado na forma impressa, naquilo que os mais antigos chamariam de “livro”. Neste pequeno manual afirma-se que o pretendente a autor deve oferecer ao aplicativo um tema, protagonistas e personagens, uma linha de desenvolvimento da trama e outras dicas para que a inteligência artificial escreva por ele o romance.

Duas coisas nos chamam a atenção de pronto. Em primeiro lugar, o fato de as buscas e pesquisas sobre inteligência artificial já terem uma história bastante antiga, provavelmente nos anos 1950, despertando eufóricas esperanças e dúvidas éticas desde sempre. Aristóteles, desde a longínqua Antiguidade, já ironizava que se os instrumentos pudessem se mover sozinhos não seriam necessários escravos, evidentemente para, diante do absurdo de tal premissa, justificar a escravidão como necessária e natural. Hannah Arendt, diante dos avanços tecnológicos presenciados nos anos 1950, atualiza a premissa de seu mestre, agora não como ironia, mas como base para a sombria previsão que em poucos anos as fábricas se esvaziariam e a condição humana se veria diante do dilema catastrófico de uma sociedade fundada no trabalho que elimina o emprego.

A segunda ordem de reflexão nos remete a um mito ainda mais antigo, que marca a sociedade moderna. Refiro-me aqui ao receio de que as obras humanas fujam ao controle e se voltem contra seus criadores. Este medo atávico se apresenta de forma recorrente, tal como se expressa no clássico Frankenstein: o Prometeu moderno (1818) de Mary Shelley, no também clássico desespero de Mickey Mouse tentando controlar vassouras que colocou em movimento para evitar seu trabalho no filme da Disney, Fantasia (1940), sem nos esquecermos da premissa fundamental da saga Matrix (1999, 2003 e 2021), em que as máquinas substituíram os seres humanos (Animatrix, 2003).

No caso de Mary Shelley, não por acaso filha da filósofa feminista Mary Wollstonecraft, quando de uma estadia chuvosa com seus amigos divertindo-se no Lago de Genebra, contando histórias de terror e discutindo os estudos de Eramus Darwin (cientista e poeta do século XVIII, avô de Charles Darwin), que afirmava ter movido matéria morta por meio da eletricidade, teve a ideia de um conto que acabou tornando-se o famoso romance sobre Frankenstein. Sobre a ideia, a autora afirmou um tempo depois que seria “terrível, extremamente assustador o efeito de qualquer esforço humano na simulação do estupendo mecanismo do criador do mundo”.

No entanto, tudo que a humanidade tem feito até hoje no desenvolvimento da tecnologia pode ser descrito como a sina de Prometeu, o subtítulo da obra de Shelley. Ele, diz a lenda, ficou encarregado pelos deuses de criar o homem a partir do barro (no qual observamos que a terceirização e o plágio são coisas antigas), mas acabou roubando o fogo dos deuses para oferecer aos homens e por tal crime foi condenado a ficar preso em um rochedo tendo seu fígado devorado e recriado para ser devorado novamente por abutres.

O ser humano é um ser que faz instrumentos para complementar sua anatomia natural precária, compensando seus dentes retos, a falta de garras e força, com machados de pedra, flechas e lanças. Para tanto, lança mão de duas características naturais da espécie: os polegares opositores e um telencéfalo altamente desenvolvido. Com isso desenvolveu, como afirma Marx, uma atividade exclusiva do gênero humano: o trabalho. Para o pensador alemão, o trabalho exige a capacidade teleológica, isto é, a incrível capacidade de antever o resultado desejado em seu cérebro, interessantemente a raiz do nome Prometeu (aquele que vê antes).

O cérebro humano tem a capacidade armazenar informações e associá-las, quando necessário, por isso pode responder às necessidades usando sua experiência anterior e sua habilidade com as mãos criando instrumentos e técnicas diversas.

O que faz a chamada Inteligência Artificial? Em princípio, ela busca informações e as associa de acordo com a necessidade de responder a algo ou alguém. Este seria o aspecto da inteligência, o caráter artificial é que ela não busca isso usando um cérebro que armazena pessoalmente experiências, ela busca em um banco de dados previamente alimentado de informações por meio de circuitos e algoritmos.

O grande salto desta ferramenta, dizem os especialistas, é que em comparação com as formas computacionais anteriores, que também buscavam dados e os associavam para executar tarefas, elas podem (ou mais precisamente estão se desenvolvendo para tanto) aprender. Em outras palavras, acumular “experiências” que possam ser usadas em outras situações. A grande dificuldade neste campo, segundo ainda aqueles que entendem do assunto e que diferem de uma malta de palpitadores, é que os computadores não erram e o erro é um caminho importante da inteligência.

Existe uma sintonia muito fina na ação humana, que faz com que pela experiência a ação seja corrigida e assim aperfeiçoada, guardando-a na memória e aplicando quando exigida. Um cientista pesquisador da Inteligência Artificial fez um teste interessante. Ele jogava uma bola para uma pessoa. Alterando aleatoriamente e com movimentos pequenos a trajetória da bola, a pessoa rapidamente conseguia pegá-la, corrigindo a posição das mãos e do seu corpo. Já para a máquina, isto implica em uma série de comandos pré-programados e a capacidade ver que a bola está vindo alguns milímetros para um lado ou outro, que não podem ser antecipados, isto é, a máquina tinha que aprender. Bom, é isso que o desenvolvimento da Inteligência Artificial busca. Interessante notar que todo desenvolvimento da técnica foi para fazer o que nós como humanos não poderíamos fazer, mas agora seria para fazer aquilo que só nós como humanos fazemos. Estranho.

Mas, por que isto deveria nos assustar? Certamente existe uma série de funções muito úteis para este desenvolvimento tecnológico, desde controle de tráfego aéreo até pedir para a caixinha de som tocar sua música predileta.

Em sua bela canção da década de 1960, Gilberto Gil procura destacar o que o distingue do cérebro eletrônico. Já no início da música, diz o querido Gil que o cérebro eletrônico “faz quase tudo, mas ele é mudo” e logo depois, em outra parte da letra, afirma que ele “comanda, manda e desmanda”, mas ele “ não anda”. Ora, hoje podemos dizer que a Alexa e alguns robôs estão aí para provar que falam e andam. Parece que alguns aplicativos podem estabelecer até uma interessante conversa sobre se deus existe ou juntar todas as informações disponíveis sobre o tema da morte e talvez oferecer reflexões pertinentes ou simulações de conforto espiritual para avançarmos em nosso caminho inevitável para a morte.

O receio atualizado, fiel à premissa de Hannah Arendt, é que tal capacidade venha a substituir os seres humanos. Já aparecem listas de profissões que estarão extintas com a generalização da Inteligência artificial, que incluem atendentes de telemarketing e de atendimento ao cliente, sociólogos, fotógrafos, jornalistas, tradutores, pesquisadores, analistas de dados, assistentes jurídicos, terapeutas e psicólogos, educadores físicos, nutricionistas, entre outras. A previsão, no caso de pesquisadores, é de um ano. Achei interessante que os filósofos não constam na lista, talvez por já serem considerados extintos.

Vamos com calma. Algumas chamadas profissões devem ser mesmo extintas, primeiro pelo fato de que não são profissões, como telemarketing ou serviços de atendimento ao cliente (previsão para desaparecerem de seis meses a um ano – acho muito), trabalhos extremamente precarizados que não oferecem nenhuma perspectiva profissional. Em segundo lugar, pelo fato de que algumas atividades são degradantes e emburrecedoras, por isso seria melhor que fossem relegadas a instrumentos ou algoritmos (que, diga-se logo, precisam melhorar muito – só quem sofreu com os autoatendimentos burros sabe do que se trata).

O que me chama a atenção é que o temor se fundamenta em uma total incompreensão do trabalho humano, reduzido a uma mera tarefa. Seria demais pedir que lessem Marx, mas já ajudaria ver a distinção realizada pela conservadora Hannah Arendt em seu livro sobre a condição humana entre labor e trabalho. O temor é uma expressão de nossos tempos de decadência, mas como tal é uma expressão fidedigna da materialidade miserável em que nos encontramos.

Se os instrumentos, além da mecanização de tarefas, desenvolverem a capacidade de guardar dados, relacioná-los para responder questões, aprenderem e serem capazes de simular experiência e memória, resta algo que parece ser desconsiderado: a intencionalidade. Em outras palavras o porquê de fazer tudo isso.

A resposta é que vivemos em tempos de subordinação real da vida e, portanto, do humano ao capital e ao processo de valorização do valor. Como tal, no auge da reificação na qual o humano se coisifica e as coisas se fetichizam. O lugar do ser humano na atividade do trabalho não se reduz a coisa na qual objetiva seu ser, nela está a intencionalidade e o fim último da coisa no consumo da substância última do ser objeto, que é a satisfação de uma necessidade do corpo ou do espírito.

Pensando na perspectiva humana, nós seriamos o início e o fim de tal processo, mas subsumidos ao domínio do capital e do valor, nos tornamos meios do processo de valorização no qual a intencionalidade e o fim último é o capital e seu movimento de valorização. O capital é o sujeito e nós os meios de sua realização.

Aquilo que a Inteligência artificial acessa em seu banco de dados não é a inteligência artificial, mas o conjunto de saberes e experiências humanas objetivadas, distanciadas de seus criadores e que voltam a ele como uma força hostil que os ameaça. Em outras palavras, aliena-se. Aquilo que acessa não é mais que um instrumento que foi feito por seres humanos que nele se objetivaram e igualmente se alienaram. Tanto o instrumento tecnológico como o conjunto de dados é produto da inteligência humana que fica escondida em seu produto estranhado. Por precisão terminológica, a sigla Inteligência artificial deveria significar Inteligência alienada.

O cérebro eletrônico agora fala e anda, pode discutir se deus existe ou o sentido da morte, pode até sistematizar um texto coerente sobre a teoria social marxiana e a possibilidade de uma revolução social, pode até assumir o comando e nos considerar obsoletos, inúteis e nos destruir como em O Exterminador do Futuro (1984) ou em 2001: uma odisseia no espaço (1968), quem sabe. No entanto, o sujeito desta ameaça não é a tecnologia, mas uma classe que transformou os meios necessários à vida em mercadorias e estas em veículos de valor e mais valor. O capital é a força estranhada que pode decidir se vivemos ou morremos, se produziremos vida ou morte. Por trás do capital existe uma classe que tem por interesse manter o processo de acumulação: a grande burguesia monopolista.

Há, ainda, um último elemento neste processo de alienação, aquilo que Marx e depois Lukács chamaram de “decadência ideológica”. Se a tecnologia é uma objetivação da inteligência humana, foi também um meio de desenvolvê-la. Agora, sob o invólucro das relações que constituem a sociedade do capital no máximo de seu desenvolvimento, ela se transforma em seu contrário, passa a constituir uma barreira para o desenvolvimento do saber humano. A ingenuidade decadente imagina um conjunto de dados e um instrumento de busca, ambos isentos de interesses e valores, mas o simples uso de uma ferramenta de busca demonstra a falácia de tal neutralidade objetiva.

Um aplicativo pode fazer um texto adequado sobre os fundamentos da sociologia e seus três autores fundantes – Marx, Durkheim e Weber –, mas o preguiçoso aluno apreenderá algo ao pedir que a máquina faça seu trabalho? Graças ao aplicativo, até um imbecil pode escrever um romance, mas continuará um imbecil. Há uma diferença entre associar palavras dispersas e dar a isto um formato de um texto ou uma imitação de produção intelectual, porque esta implica a intencionalidade e a subjetividade do autor que ao contribuir com o saber coletivo engrandece a si mesmo. Subsumido à ordem da mercadoria e do capital, como dizia Marx, quanto mais o trabalhador realiza a mercadoria, mais se desrrealiza.

No caso sobre o qual nos debruçamos, o preguiçoso e suposto autor que só pede que a máquina reúna os dados existentes e previamente armazenados, sem acrescentar nada nem ao conhecimento coletivo nem a ele próprio: um algoritmo pode escrever um texto, mas nunca escreverá O Capital, pode escrever um romance, mas nunca escreverá As vinhas da ira. Pode juntar palavras belas em uma métrica perfeita, mas nunca será Maiakóvski, pode fazer uma música mas nunca poderá ser Caetano Veloso. E se um dia, por uma hipótese absurda o fizer, será para que enquanto máquina possa ser aquilo que nós, enquanto humanos, abdicamos de ser.

Sabe Gil… permita-me mexer em seus versos: “Nosso caminho não precisa ser para a morte \ Porque somos vivos \ Somos muito vivos e sabemos \ Que cérebro eletrônico nenhum nos dá socorro \ Com seus botões de plástico e seus olhos de vidro”.

*Mauro Luis Iasi é professor da Escola de Serviço Social da UFRJ. Autor, entre outros livros, de As metamorfoses da consciência de classe (Expressão Popular).

Publicado originalmente no blog da Boitempo.

A Terra é Redonda

As habilidades da Inteligência artificial

Imagem: Francesco Paggiaro

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Por YUVAL NOAH HARARI*

Inteligência artificial invadiu o sistema operacional da civilização humana

O medo da Inteligência artificial (IA) tem assombrado a humanidade desde o início da era do computador. Até agora, esses temores se concentravam nas máquinas que usavam meios físicos para matar, escravizar ou substituir pessoas. Porém, nos últimos dois anos, surgiram novas ferramentas de Inteligência artificial que ameaçam a sobrevivência da civilização humana de uma forma inesperada. A Inteligência artificial adquiriu algumas habilidades notáveis para manipular e gerar linguagem, seja com palavras, sons ou imagens. Dessa forma, a Inteligência artificial invadiu o sistema operacional da nossa civilização.

A linguagem é o material de que é feita quase toda a cultura humana. Os direitos humanos, por exemplo, não estão inscritos em nosso DNA. Em vez disso, são artefatos culturais que criamos ao contar histórias e escrever leis. Os deuses não são realidades físicas. Em vez disso, são artefatos culturais que criamos ao inventar mitos e escrever escrituras.

O dinheiro também é um artefato cultural. As cédulas são apenas pedaços de papel colorido e, atualmente, mais de 90% do dinheiro nem sequer são cédulas, são apenas informações digitais em computadores. O que dá valor ao dinheiro são as histórias que banqueiros, ministros da fazenda e gurus da criptomoeda nos contam sobre ele. Sam Bankman-Fried, Elizabeth Holmes e Bernie Madoff não eram particularmente bons em criar valor real, mas todos eles eram contadores de histórias extremamente competentes.

O que aconteceria quando uma inteligência não humana se tornasse melhor do que o ser humano médio para contar histórias, compor melodias, desenhar imagens e escrever leis e escrituras? Quando as pessoas pensam no ChatGPT e em outras novas ferramentas de Inteligência artificial, geralmente são atraídas para exemplos como crianças em idade escolar que usam Inteligência artificial para escrever suas redações. O que acontecerá com o sistema escolar quando as crianças fizerem isso? Mas a esse tipo de pergunta escapa um panorama mais geral. Esqueça as redações escolares. Pense na próxima corrida presidencial americana, em 2024, e tente imaginar o impacto das ferramentas de Inteligência artificial que podem ser criadas para produzir conteúdo político em massa, notícias falsas e escrituras para novos cultos.

Nos últimos anos, o culto QAnon se aglutinou em torno de mensagens anônimas on-line, conhecidas como “Q drops”. Os seguidores coletaram, reverenciaram e interpretaram esses Q drops como um texto sagrado. Embora, até onde sabemos, todos os Q drops anteriores tenham sido compostos por humanos e os bots tenham apenas ajudado a disseminá-los, no futuro poderemos ver os primeiros cultos da história cujos textos reverenciados foram escritos por uma inteligência não humana. As religiões ao longo da história reivindicaram uma fonte não humana para seus livros sagrados. Em breve, isso poderá se tornar realidade.

Em um nível mais prosaico, em breve poderemos nos ver conduzindo longas discussões on-line sobre aborto, mudanças climáticas ou a invasão russa da Ucrânia com entidades que pensamos serem humanos, mas que na verdade são Inteligência artificial. O problema é que é totalmente inútil gastarmos tempo tentando mudar as opiniões declaradas de um bot de Inteligência artificial, enquanto a Inteligência artificial poderia aprimorar suas mensagens com tanta precisão que teria uma boa chance de nos influenciar.

Por meio de seu domínio da linguagem, a Inteligência artificial poderia até mesmo formar relacionamentos íntimos com as pessoas e usar o poder da intimidade para mudar nossas opiniões e visões de mundo. Embora não haja nenhuma indicação de que a Inteligência artificial tenha consciência ou sentimentos próprios, para promover uma falsa intimidade com os humanos, basta que a Inteligência artificial consiga fazer com que eles se sintam emocionalmente ligados a ela.

Em junho de 2022, Blake Lemoine, um engenheiro do Google, afirmou publicamente que o chatbot LaMDA, no qual ele estava trabalhando, tinha se tornado senciente. Essa afirmação polêmica custou-lhe o emprego. O mais interessante desse episódio não foi a afirmação do Sr. Lemoine, que provavelmente era falsa. Em vez disso, foi sua disposição de arriscar seu emprego lucrativo em prol do chatbot de Inteligência artificial. Se a Inteligência artificial pode influenciar as pessoas a arriscarem seus empregos por ela, o que mais ela poderia induzi-las a fazer?

Em uma batalha política por mentes e corações, a intimidade é a arma mais eficiente, e a Inteligência artificial acaba de ganhar a capacidade de produzir em massa relacionamentos íntimos com milhões de pessoas. Todos nós sabemos que, na última década, as mídias sociais se tornaram um campo de batalha para controlar a atenção humana. Com a nova geração de Inteligência artificial, a frente de batalha está mudando da atenção para a intimidade. O que acontecerá com a sociedade humana e a psicologia humana quando a Inteligência artificial lutar contra a Inteligência artificial em uma batalha para fingir relacionamentos íntimos conosco, que podem ser usados para nos convencer a votar em determinados políticos ou comprar determinados produtos?

Mesmo sem criar uma “falsa intimidade”, as novas ferramentas de Inteligência artificial teriam uma imensa influência em nossas opiniões e visões de mundo. As pessoas podem vir a usar um único conselheiro da Inteligência artificial como um oráculo completo e onisciente. Não é de se admirar que o Google esteja apavorado. Por que se preocupar em pesquisar se posso simplesmente perguntar ao oráculo? As indústrias de notícias e publicidade também deveriam estar apavoradas. Por que ler um jornal se posso simplesmente pedir ao oráculo para me informar sobre as últimas notícias? E qual é a finalidade dos anúncios, quando posso simplesmente pedir ao oráculo que me diga o que comprar?

E mesmo esses cenários não capturam o panorama geral. O que estamos falando é potencialmente o fim da história humana. Não o fim da história, apenas o fim de sua parte dominada pelos humanos. A história é a interação entre biologia e cultura; entre nossas necessidades biológicas e desejos por coisas como comida e sexo e nossas criações culturais, como religiões e leis. A história é o processo pelo qual as leis e as religiões moldam a comida e o sexo.

O que acontecerá com o curso da história quando a Inteligência artificial assumir o controle da cultura e começar a produzir histórias, melodias, leis e religiões? Ferramentas anteriores, como a imprensa e o rádio, ajudaram a disseminar as ideias culturais dos seres humanos, mas nunca criaram novas ideias culturais próprias. A Inteligência artificial é fundamentalmente diferente. A Inteligência artificial pode criar ideias completamente novas, uma cultura completamente nova.

No início, a Inteligência artificial provavelmente imitará os protótipos humanos com os quais foi treinada em sua infância. Mas, a cada ano que passa, a cultura da Inteligência artificial irá audaciosamente para onde nenhum ser humano foi antes. Durante milênios, os seres humanos viveram dentro dos sonhos de outros seres humanos. Nas próximas décadas, poderemos nos encontrar vivendo dentro dos sonhos de uma inteligência alienígena.

O medo da Inteligência artificial tem assombrado a humanidade apenas nas últimas décadas. Mas, há milhares de anos, os seres humanos são assombrados por um medo muito mais profundo. Sempre apreciamos o poder das histórias e imagens para manipular nossas mentes e criar ilusões. Consequentemente, desde os tempos antigos, os seres humanos temem estar presos em um mundo de ilusões.

No século XVII, René Descartes temia que talvez um demônio malicioso o estivesse aprisionando em um mundo de ilusões, criando tudo o que ele via e ouvia. Na Grécia antiga, Platão contou a famosa Alegoria da Caverna, na qual um grupo de pessoas é acorrentado dentro de uma caverna por toda a vida, diante de uma parede em branco. Uma tela. Nessa tela, eles veem projetadas várias sombras. Os prisioneiros confundem as ilusões que vêem com a realidade.

Na Índia antiga, os sábios budistas e hindus indicaram que todos os humanos viviam presos em Maya – o mundo das ilusões. O que normalmente consideramos realidade muitas vezes são apenas ficções em nossa própria mente. As pessoas podem travar guerras inteiras, matando outras e querendo ser mortas, por causa de sua crença nessa ou naquela ilusão.

A revolução da Inteligência artificial está nos colocando frente a frente com o demônio de Descartes, com a caverna de Platão e com Maya. Se não formos cuidadosos, poderemos ficar presos atrás de uma cortina de ilusões, que não conseguiremos rasgar, ou mesmo perceber que está ali.

É claro que o novo poder da Inteligência artificial também pode ser usado para bons propósitos. Não vou me estender sobre isso, porque as pessoas que desenvolvem a Inteligência artificial já falam bastante sobre ela. O trabalho de historiadores e filósofos como eu é apontar os perigos. Mas, certamente, a Inteligência artificial pode nos ajudar de inúmeras maneiras, desde encontrar novas curas para o câncer até descobrir soluções para a crise ecológica. A questão que enfrentamos é como garantir que as novas ferramentas de Inteligência artificial sejam usadas para o bem e não para o mal. Para fazer isso, primeiro precisamos avaliar as verdadeiras capacidades dessas ferramentas.

Desde 1945, sabemos que a tecnologia nuclear poderia gerar energia barata para o benefício dos seres humanos, mas também poderia destruir fisicamente a civilização humana. Por isso, reformulamos toda a ordem internacional para proteger a humanidade e garantir que a tecnologia nuclear fosse usada principalmente para o bem. Agora temos que lidar com uma nova arma de destruição em massa que pode aniquilar nosso mundo mental e social.

Ainda podemos regulamentar as novas ferramentas de Inteligência artificial, mas precisamos agir rapidamente. Enquanto as bombas nucleares não podem inventar bombas nucleares mais potentes, a Inteligência artificial pode criar exponencialmente Inteligência artificial ainda mais poderosa. O primeiro passo crucial é exigir verificações de segurança rigorosas antes que ferramentas de Inteligência artificial poderosas sejam liberadas para o domínio público.

Assim como uma empresa farmacêutica não pode liberar novos medicamentos antes de testar seus efeitos colaterais de curto e longo prazos, as empresas de tecnologia não devem liberar novas ferramentas de Inteligência artificial antes que elas sejam consideradas seguras. Precisamos de um equivalente da Food and Drug Administration para novas tecnologias, e precisamos disso para ontem.

A desaceleração das implementações públicas de Inteligência artificial não fará com que as democracias fiquem atrás de regimes autoritários mais cruéis? É exatamente o contrário. As implementações não regulamentadas de Inteligência artificial criariam o caos social, o que beneficiaria os autocratas e arruinaria as democracias. A democracia é uma conversação, e as conversas dependem da linguagem. Quando a Inteligência artificial invade a linguagem, ela pode destruir nossa capacidade de ter conversas significativas, destruindo assim a democracia.

Acabamos de encontrar uma inteligência alienígena aqui na Terra. Não sabemos muito sobre ela, exceto que ela pode destruir nossa civilização. Devemos por fim à implementação irresponsável de ferramentas de Inteligência artificial na esfera pública e regular a Inteligência artificial antes que ela nos regule. E a primeira regulamentação que eu sugeriria é tornar obrigatório que a Inteligência artificial revele que é uma Inteligência artificial. Se eu estiver conversando com alguém e não puder saber se é um humano ou uma Inteligência artificial, será o fim da democracia.

Este texto foi gerado por um humano. Ou será que não?

Yuval Noah Harari é professor de história na Universidade Hebraica de Jerusalém. Autor, entre outros livros, de Sapiens – uma breve história da humanidade (Companhia das Letras).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no portal da revista The economist.

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