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Emendas parlamentares: para onde caminha o orçamento público?

Por Lenir Santos e Bruno Moretti

As emendas parlamentares individuais ao orçamento público a partir da EC 86, de 2015, passaram a ter a sua execução orçamentária e financeira impositiva para o Poder Executivo. Essa mudança constitucional fez incidir uma maior participação do Legislativo na definição do orçamento, que no nosso país, até a EC 100 — que torna obrigatória, ao lado das emendas individuais, a execução da programação orçamentária proveniente de emendas de bancada —, tinha característica de orçamento autorizativo e não impositivo por sua programação caber ao Executivo e não ao Legislativo.

A partir da EC 86, de 2015, o valor de 1,2% da receita corrente líquida do ano anterior pode ser definido pelos parlamentares individualmente por meio de emendas ao projeto de lei orçamentária anual, cabendo ao Executivo o seu cumprimento (impositividade orçamentária), sendo o limite para as emendas de bancada de 1%.

Por sua vez, a EC 95 (artigo 111, ADCT) prevê que, desde 2018, o montante de execução obrigatória das emendas individuais é equivalente ao valor de 2017 atualizado pela inflação de 12 meses (inciso II do §1º, artigo 107, ADCT). Lembramos ainda as alterações realizadas pela EC 105, de 2019.

Assim, há um limite no orçamento para as emendas individuais e as de bancada, que a partir de 2018, passam a ter seu montante definido a partir da inflação de 12 meses, aplicada ao valor do exercício anterior. O critério de equidade das emendas individuais ganhou definição constitucional pela EC 100, de 2019, além dos critérios deverem ser objetivos e imparciais e suas programações igualitárias e impessoais.

Ocorre que, em 2020, o projeto de lei orçamentária passou a ser emendado pelo relator sob a identificação do Resultado Primário nº 9 (RP 9). Sem previsão na LDO, a emenda de relator, em 2021, ganhou caráter de impositividade pela Portaria Interministerial ME/SEGOV-PR nº 6.145, ao dispor que os limites de empenho das programações classificadas com RP 9 poderão ser reduzidos na mesma proporção aplicável ao conjunto das despesas primárias discricionárias do Poder Executivo federal. Isto é, sem qualquer previsão constitucional ou mesmo legal, tal portaria fez nascer no orçamento da União a emenda de relator de caráter impositivo. Os recursos dessa emenda apenas não podem ser executados se houver impedimento técnico ou se forem contingenciados até o, patamar das demais despesas discricionárias, exatamente nos termos das emendas impositivas.

Ora, sem a lei complementar mencionada no artigo 165 da Constituição, a portaria interministerial ora citada passou, a partir deste ano, a dispor sobre procedimentos e prazos para a operacionalização das emendas individuais, de bancada e de relator-geral, esta última em relação às emendas de relator à Lei nº 14.144, de 2021 — LOA-21.

A partir de então, uma portaria interministerial deu status de impositividade, no âmbito do Legislativo Federal, à emenda de relator, com execução assemelhada às emendas impositivas (individual e de bancada), sem haver previsão constitucional específica e limites em seu valor. A emenda de relator-geral nem mesmo permite identificar o parlamentar e o valor consignado individualmente, pecando contra a Constituição ao desrespeitar os princípios da publicidade, transparência e impessoalidade.

O que a Constituição consigna é que as emendas ao projeto de lei orçamentário somente serão impositivas quando individuais ou de bancada e, certamente, identificáveis e sujeitas às normas previstas na Constituição, com valor limitado pela Constituição e atendendo a critérios objetivos e imparciais, além de programação de forma igualitária e impessoal, entre outros aspectos.

As emendas de relator (RP 9), orçadas em R$ 16,850 bilhões na LOA de 2021, parcialmente vetadas pelo presidente da República, não respeitam o limite da RCL ou qualquer outro indicador; não permitem identificar o parlamentar proponente; o valor incialmente proposto, além de facilitar casuísmos próprios de negociação “paroquial”, conforme o professor Fernando Scaff em seu artigo publicado na revista ConJur [1], que aponta para o risco de uso eleitoreiro, especialmente ao ser vetado o fundo eleitoral.

Em 2020 foram executados ao menos R$ 3 bilhões das emendas de relator, sob denúncias de compras superfaturadas de trator e favorecimento político na destinação dos recursos [2]. Os ofícios com pedidos de recursos, aos quais a imprensa teve acesso, mostram a concentração dos valores em parlamentares da base de apoio do governo, bem como a desigualdade na distribuição aos municípios beneficiados, ferindo objetivos fundamentais da República.

Os recursos foram executados sem a explicitação de qualquer critério objetivo de alocação, contrariando os princípios constitucionais da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência na Administração Pública federal e da LDO, que veda uso que possa caracterizar influência na apreciação de proposições legislativas em tramitação no Congresso Nacional.

Por outro lado, em relação aos impactos das emendas impositivas constitucional, de bancada e individuais na área da saúde, percebe-se também distorções, como o desrespeito ao planejamento e ao plano de saúde. Não significa dizer que não deve haver emendas por parlamentares, mas, sim, a obrigatoriedade de vinculá-las ao planejamento da saúde.

Ressalte-se o impacto na saúde das emendas de relator impositivas para o orçamento de 2021 (inicialmente, R$ 7,5 bilhões), afetando o cumprimento do Plano Nacional de Saúde (PNS) — 2020-2023 em suas programações plurianuais. As emendas, tanto as individuais como as de bancada, e agora as de relator, não têm respeitado o PNS vigente por simplesmente atuarem como incremento de atividades de saúde, mediante destinação de recursos sem aderência ao planejamento da saúde. No planejamento da saúde, o critério prioritário é o epidemiológico, na forma da lei, e as emendas sempre têm caráter episódico e incremental, desalinhadas pois ao plano de saúde.

Até o fim de agosto, na saúde, já haviam sido pagos R$ 2,45 bilhões de emendas de relator, conforme dados do Fundo Nacional de Saúde. A análise dos dados oficiais não aponta para qualquer critério sanitário ou populacional na execução desses recursos. Por exemplo, os municípios que mais receberam recursos em todo o Brasil foram São Gonçalo e Duque de Caxias, ambos no Rio de Janeiro, enquanto diversas capitais e municípios, ainda que mais populosos, nada receberam. Juntos, os dois municípios receberam R$ 83 milhões. Vale considerar que o incremento de custeio das redes de atenção básica, média e alta complexidade pelas emendas de relator sequer é vinculado ao plano de saúde e limitado ao volume de transferências regulares recebidas, conforme ocorre com as emendas impositivas.

O Sistema Único de Saúde (SUS) padece de subfinanciamento há 33 anos e desde 2018 passou a ser “desfinanciado” pela EC 95, de 2016, que fixou o valor mínimo no ano de 2017 como o piso da saúde, atualizado pelo IPCA de 12 meses acumulado até junho do mês anterior ao que se refere a lei orçamentária. As emendas individuais e de bancada impositivas agravam esse quadro, pois, além de não cumprirem o plano de saúde, consomem parcela do piso congelado da saúde. Por exemplo, na proposta orçamentária de 2022, o orçamento de ações e serviços públicos de saúde é de R$ 134,5 bilhões (apenas R$ 400 milhões acima do piso, de R$ 134,1 bilhões), e as emendas individuais e de bancada consomem R$ 8,1 bilhões desse valor sem aderência ao planejamento sanitário, afora os valores das emendas de relator sem limite e sem transparência, a serem incluídas pelo Congresso Nacional. Ou seja, retiradas as emendas parlamentares, o orçamento de saúde estaria aquém do piso da saúde estabelecido pela EC 95, em um processo de redução de recursos para o SUS.

Cumpre destacar que, não fosse o congelamento do piso de saúde pela EC 95, a área teria mais R$ 25 bilhões na sua proposta orçamentária de 2022, já que o valor mínimo obrigatório de aplicação seria 15% da receita corrente líquida, nos termos da EC 86, de 2015.

As necessidades de saúde da população, estimadas no PNS, que se espelham nas diretrizes fixadas pela Conferência Nacional de Saúde, nos termos da Lei nº 8.142, de 1990, tendem a não ser atendidas pelas emendas parlamentares, diante de seus critérios político-parlamentares nem sempre compatíveis com os requisitos técnicos, especialmente a observância do planejamento e plano de saúde, agravado pelas emendas de relator que pecam pela falta de critérios básicos de transparência e equidade, entre outros.

Parâmetros de equidade sanitários são obrigatórios na saúde para não se criar assimetrias na organização do SUS, tampouco desrespeitar as suas políticas e as necessidades da população e assim diminuir as disparidades e desigualdades regionais e vazios assistenciais.

Certamente pelo instituto da recepção de normas infraconstitucionais, estão recepcionadas pelas emendas constitucionais aqui referidas as normas da Lei nº 8.080, de 1990, que dispõem ser “vedada a transferência de recurso para o financiamento de ações e serviços de saúde, exceto em situações emergenciais ou de calamidade pública, na área da saúde”. O planejamento público é obrigatório e as referidas emendas devem respeito ao plano de saúde, devendo com ele guardar conformidade.

Importante ainda que a emenda seja considerada entre as transferências obrigatórias da União (por exemplo, observando-se a capacidade instalada em cada região de saúde) e os recursos de capital, ao acrescerem custos ao sistema, deverem conter a indicação prévia de fonte de seu custeio futuro.

Por fim, a emenda de relator não contém qualquer lastro constitucional além de não respeitar os princípios da publicidade e transparência dos atos públicos e tampouco os objetivos da República, especialmente o da diminuição das disparidades regionais. Permite ainda a “pessoalidade” em suas negociações por meio da distribuição de recursos sem atendimento a critérios objetivos e a requisitos mínimos de equidade, seja em relação a distribuição entre parlamentares e bancadas, seja em relação aos beneficiários.

Se a situação do orçamento público é de escassez, ainda que produzida artificialmente pelo arcabouço fiscal vigente, como executá-lo sem aderência ao planejamento público obrigatório? Diante do peso crescente das emendas no orçamento da saúde, o subfinanciamento do SUS tende a se agravar, colocando em risco a saúde da população.

 


[1] Acessível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-31/contas-vista-extorsao-financeira-mediante-sequestro-orcamentario-ldo-2022.

[2] https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-cria-orcamento-secreto-em-troca-de-apoio-do-congresso,70003708713.

Lenir Santos é advogada, especialista em direito sanitário pela USP, doutora em saúde pública pela Unicamp e em estágio pós-doutoral pela Fiocruz.

Bruno Moretti é economista pela UFF, mestre em Economia pela UFRJ, doutor e estágio pós-doutoral em Sociologia pela UnB.

Revista Consultor Jurídico

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