Para Marx, ela era o abismo entre o tempo de trabalho pago e o apropriado pela empresa. Cem anos depois, Ruy Marini foi além. Para ele, em países periféricos, burguesia compensa perdas internacionais esfolando seu próprio povo
Por Roberta Traspadini e Marisa Amaral| Imagem: Diego Rivera, A vendedora de flores (1941)
Uma introdução à centralidade da categoria superexploração
Há cem anos, em 1920, Lênin publicava um texto,1 ainda não traduzido para o português, em que trazia a célebre síntese de que a alma viva do marxismo é a análise concreta da situação concreta. Com isso, o revolucionário russo desejava se referir à importância de que os fenômenos e movimentos da realidade concreta sejam corretamente diagnosticados, definidos e compreendidos, pois parte daí a capacidade que temos de (re)agir e de nos movermos no sentido de qualquer transformação social, seja ela radical ou não.
O capitalismo, ao longo de seu percorrer histórico, cria uma infinidade de novos fenômenos e processos que devem ser vistos, em sua essência, meramente como novas formas para as mesmas relações sociais que fundamentam a própria existência deste específico modo de produção. No Livro 1 de O Capital, Marx formula aquela que talvez seja a mais fundamental dessas relações: a taxa de exploração da força de trabalho, definida como o período da jornada de trabalho dos trabalhadores em que estes produzem valor que não será apropriado por eles, mas pelo capital; é o tempo de trabalho excedente, a mais-valia, cuja existência é a condição estrutural que justifica o fato de o tempo de trabalho total ser sempre superior ao tempo de trabalho necessário, aquele que fica para os trabalhadores na forma de salário.
No tratamento que faz Marx sobre as leis capitalistas gerais (isto é, os fundamentos para o funcionamento do capitalismo), são identificadas três formas de fazer crescer a mais-valia e, com isso, o lucro capitalista: via aumento da jornada de trabalho, via intensificação do trabalho (ambas tratadas como mais-valia absoluta) e via redução do valor da força de trabalho e consequente redução de salários (esta última tratada como mais-valia relativa, que ocorre por meio da redução dos valores e preços das mercadorias que compõem a “cesta” de consumo dos trabalhadores, garantindo sua subsistência e de suas famílias). Em todos esses casos, o fenômeno é o mesmo: o salário recebido pelos trabalhadores é inferior ao valor que eles produzem (e vale aqui a observação de que o valor, como relação social e histórica, é inerente às mercadorias, ainda que o sistema opere para mostrar somente o preço, o que gera uma confusão absurda no uso dos termos e de seu real significado no modo de operar deste sistema). Dito de outra forma: o trabalho exercido pelos trabalhadores não é plenamente remunerado. Melhor ainda: em parte expressiva de seu dia de trabalho, os trabalhadores dedicam a trabalhar gratuitamente para o capital, uma vez que o salário que recebem é sempre inferior a todo o valor que produzem. Numa imagem:
Fonte: Politize
Quem vê esta charge não pensa errado se conclui que o trabalhador (incluída aí toda a gama de pessoas que compõem este grupo, homens, mulheres, crianças, adultos, e as mais diversas raças e etnias) se auto-remunera, já que quem, de fato, trabalha e produz as mercadorias não tem o direito de participar do banquete da apropriação. Na forma da propriedade privada, os trabalhadores são privados de se realizarem como proprietários do fruto do seu próprio trabalho.
Marx ainda nos esclarece que, à medida que o capitalismo se expande e que a acumulação cresce, amplia-se esse abismo entre o tempo de trabalho total e o tempo de trabalho remunerado, isto é, aumenta o tempo de trabalho não pago, o tempo de trabalho roubado exercido pelo trabalhador, a taxa de exploração de sua força de trabalho. Assim, muita, intensa e excessiva exploração é o que se desenha na dinâmica capitalista. Uma (SUPER) exploração.
Mais de cem anos depois dessa elaboração de Marx, em 1969, o brasileiro Ruy Mauro Marini, ao estudar a forma como os países da América Latina se inserem na dinâmica necessariamente mundializada de expansão da acumulação, elabora, pela primeira vez, a categoria que escolhe chamar de superexploração do trabalho, que, mais tarde, em 1973, caracteriza pelo aumento da intensidade do trabalho, pelo prolongamento da jornada de trabalho e pela apropriação feita pelo capitalista do fundo de consumo do trabalhador – três formas de fazer crescer a taxa de exploração da força de trabalho, exatamente como definiu Marx cem anos atrás.
(SUPER)exploração em Marx e superexploração em Marini seriam, então, a mesma coisa?
Não, pois Marini não fala em superexploração simplesmente reproduzindo ou ecoando O Capital, como lei tendencial e contínua. Marini fala em superexploração para demonstrar que as economias latino-americanas, por se inserirem de maneira subordinada na divisão internacional do trabalho, como países produtores e exportadores de mercadorias típicas do setor primário e ligadas à extração de recursos naturais, transferem sempre para os países imperialistas parte dos valores que criam internamente – seja por conta de um comércio internacional desigual, seja por conta do pagamento de juros e amortizações de dívidas, remessas de lucro como contrapartida a investimentos diretos estrangeiros, pagamento de royalties, ou mesmo por conta das concessões historicamente feitas pelo Estado aos capitais monopolistas, garantindo o direito ao uso da terra para a espoliação extrativista, entre outras formas.
Ocorre o que Marini chama de cisão das fases do ciclo do capital, que indica basicamente que é gerado valor internamente e esse valor não será absorvido na acumulação interna de capital, entrando na circulação internacional. Ou seja, na dinâmica produtiva das economias latino-americanas, o que se define como desenvolvimento tem uma característica sui generis: funcionar como engrenagem do capital monopolista e, por conta disso, encontrar mecanismos que contrarrestem uma suposta condição de subdesenvolvimento.
O resultado é: os países latino-americanos recorrem a uma maior exploração da força de trabalho para a criação de maior mais-valia, ampliando, com isso, sua capacidade interna de acumulação. Eis aí o que Marini define como superexploração: como um mecanismo de compensação às perdas internacionais de valor. É muita exploração da força de trabalho em nome de muita acumulação e apropriação imperialista de capital. O que significa dizer que não é somente mais exploração. Desde o início do capitalismo dependente, é mais exploração como forma de compensar as quedas internas nas taxas de lucro resultantes de imposições exercidas no âmbito internacional pelos capitais hegemônicos.
Pode parecer um tanto abstrato tratar a questão apenas nesse nível, em especial quando consideramos preocupações que nos ocupam hoje quanto às formas contemporâneas que assumem as relações de trabalho, sobretudo aquelas que tentam esconder as relações diretas entre capital e trabalho e, para isso, se travestem de “empreendedorismo” e trabalho autônomo, iludindo a realidade da exploração interna e internacional da força de trabalho pelo capital. No entanto, se algo há de forte numa boa teoria, é o fato de ela explicar, elaborar e contribuir para a transformação da realidade concreta. Mas, qual a realidade do mundo do trabalho atual no Brasil? Teria sentido mantermos o debate analítico da superexploração como categoria que explica nossa particularidade histórica?
Um retrato contemporâneo da superexploração de Marini, alguns pontos, muitas questões
Daremos três exemplos concretos da dimensão da superexploração da força de trabalho no Brasil em nosso cotidiano:
- O Brasil possui uma População Economicamente Ativa (PEA) de aproximadamente 73 milhões de pessoas. Destas, menos de 38 milhões trabalham com carteira assinada. Estamos falando, então, de 35 milhões de trabalhadores e trabalhadoras sem direitos formais, atuando por conta própria.
- Além disso, cabe reforçar que existe no campo uma população de mais de 30 milhões de pessoas, entre as quais 15 milhões são trabalhadores. Destes, mais de 12 milhões são contratados por pequenos estabelecimentos rurais e apenas 3 milhões pelo agronegócio. Dados do último censo agropecuário, 2017. Os minifúndios, maiores empregadores no campo, ocupam somente 7,6% das terras agricultáveis do Brasil e correspondem, no entanto, a quase 70% do número de estabelecimentos. Em contrapartida, o latifúndio, que responde apenas por 2,3% do número de estabelecimentos, fica com 61,1% das terras. Este, não satisfeito com seu poderio secular, luta, com todas as forças institucionais a seu favor, para expandir suas fronteiras agrícolas sobre os povos indígenas e quilombolas do país.
- O sistema prisional brasileiro conta atualmente com 748.009 detentos, segundo o INFOPEN (2019), com 48% deles em regime fechado. A população carcerária de 18 a 34 anos é de 62% em relação ao total. A população feminina prisional é de 36.929 e a masculina de 711.080. Um destaque: nos últimos 18 anos, o aumento de mulheres presas foi de mais de 600%.
Mas, o que o trabalho informal, o trabalho no campo e o trabalho no sistema prisional têm em comum? Todos eles compõem a totalidade do mundo do trabalho brasileiro e sua indissociável relação subordinada às economias imperialistas hegemônicas de nosso tempo. Nesse sentido, os salários, como visto antes, deverão cumprir a função de compensar, internamente, aquilo que externamente a burguesia que atua em território brasileiro perde como apropriação de parte da riqueza produzida em todo o mundo.
A relação entre a teoria e a realidade tal qual se apresenta
Quanto maior a desigualdade entre o campo e a cidade, entre os sem direito e os com direito trabalhista e as discrepâncias regionais no que tange à ideia de desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico, tanto mais o capital atuante internamente encontrará meios fecundos de ampliar sua relação de expropriação e espoliação sobre os trabalhadores e as trabalhadoras.
As condicionantes internas de raça, classe, gênero e regionalidades, com ênfase para a distinção intencional entre campo (atrasado) e cidade (moderna) dão a dimensão estruturante da nossa desigualdade e das raízes profundas das quais emana a superexploração, não como mais exploração, mas como particularidade histórica que nasce e se desenvolve condicionada pelo papel que nossa economia cumpre, em cada tempo, na divisão internacional do trabalho. Nesse sentido, o que se entende de forma conjuntural como mais exploração em geral, aqui é superexploração em particular dimensionada pela totalidade da ofensiva do capital sobre e contra o trabalho em todas as partes do mundo.
O termo, portanto, que explica o arraigo nacional ao plano internacional e a inexistência na DIT de uma possível autonomia, soberania nacional, sem luta de classes, sem rupturas com a ordem vigente, é a superexploração. Esta dá a tônica, em cada tempo, da substantiva e contínua transferência de valor (do Sul para o Norte). A superexploração é, então, a substância que define o papel da particularidade latino-americana na totalidade desigual do jogo do capital.
Mais do que entendê-la como uma forma, trata-se de apresentar seu conteúdo metabólico. Este, ancorado na formação social e histórica de um passado invasor e colonial em que negros, negras e povos indígenas foram preteridos como “menos” no âmbito de quem é “civilizado” e quem é “bárbaro”, dão a tônica da profunda história que está por trás como a estrutura da conjuntura de nosso tempo.
Superexploração – particularidade e movimento
Onde estão, afinal, a particularidade e o movimento? A superexploração é particular do capitalismo dependente, está na sua gênese e o define como tal. E ela se expressa, se manifesta, se exprime como (SUPER)exploração, mais exploração, muita exploração. Como aumento da exploração para contornar a queda da taxa de lucro provocada pelas relações entre os capitais de origem/atuação dependente e aqueles que têm origem/atuação no capitalismo central. Precisamente aqui está o movimento. A superexploração é uma (SUPER)exploração exercida pelo capital imperialista sobre a força de trabalho que vive e trabalha na periferia, e que será crescente e permanentemente pressionada a contribuir com o aumento da capacidade de acumulação em geral.
Isso ocorre como tendência no capitalismo em geral. No capitalismo monopolista, entretanto, com a acumulação em escala ampliada exigindo que a atuação do capital se dê em escala global, o processo de centralização e concentração do capital revela a quem e para onde é endereçada a massa substantiva da riqueza produzida no mundo. O capitalismo dependente, parte indissociável do capitalismo monopolista, é inexpressivo nessa lista de apropriação da riqueza. Mas é o real produtor, preterido na apropriação da mesma. De modo que a exploração da força de trabalho aqui cumpre uma função, sobretudo, internacional e, como tal, deve atender a uma fila de interesses internos e externos que conduzem a formas de trabalho fortemente precarizadas, brutalizadas e alienantes.
Assim, entre a (SUPER)exploração de Marx (forma superlativa) e a superexploração de Marini (conteúdo substantivo), passando pela leitura atenta de Lênin sobre a análise da realidade concreta, o que pretendemos demarcar é o caráter relacional, processual e dialético presentes entre a parte e o todo.
1LENIN, Vladimir Ilitch. «Kommunizm»: «Jurnal Komunistitcheskogo Internatsionala dlya Stran Yugo-Vostotchnoy Evropy » (Na Nemetskom Yazyke). Vena, Tetradi 1—2, ot 1 Fevralya 1920, do 18-oy, ot Maya 1920. Em: ______. Polnoe Sobranie Sotchineniy. 5. ed. Moscou: Izdatel’stvo Polititcheskoy Literatury, 1980, t. 41, p. 135-137.
Roberta Traspadini e Marisa Amaral
Marisa Amaral — Professora Associada do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (IERI/UFU)
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